Estudioso do sistema eleitoral brasileiro, o cientista político Jairo Nicolau, pesquisador do FGV CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), atribui a ascensão dos chamados grupos de renovação da política à crise enfrentada pelos partidos tradicionais que, segundo ele, estão se transformando em “instituições paraestatais”, tamanha a “dinheirama” que recebem dos cofres públicos.
Autor de livros como Representantes de Quem? Os (Des)caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados, Nicolau lamenta, nesta entrevista ao Estado, que esses movimentos estejam renovando a política, mas não os partidos, imprescindíveis em qualquer democracia. Confira os principais trechos da entrevista:
Os grupos de renovação estão ocupando o espaço dos partidos?
Os partidos sempre foram os formadores dos políticos. A carreira clássica de um político se faz pelos canais partidários. Eu não estaria errado em dizer que esses movimentos desconfiam desse processo, que tem formado quadros incompetentes, despreparados. E nós precisamos preparar as pessoas com cursos, bolsas, processos de formação e impulsionar a carreira dessas pessoas. Mas a única forma no Brasil, e em quase todas as democracias, de ser um ator legítimo numa corrida eleitoral é estar filiado a um partido.
O ideal para esses grupos seria então a candidatura avulsa?
Há muita fantasia em relação a isso. As candidaturas avulsas são totalmente marginais no processo global. Mas aqui acho que o sonho deles era ter as candidaturas avulsas, que resolveriam um problema. Querem cumprir seus mandatos, sendo bons gestores, mas preferencialmente fora dos partidos. Mas os partidos estão aí e não tem jeito. Muitos partidos deram um falso mandato avulso. Emprestou-se a legenda para eles concorrerem, dizendo que dariam autonomia.
Qual a consequência de se emprestar uma legenda?
Quando esses movimentos não optam por criar uma legenda ou fortalecer um partido que já existe geram um território cinzento em que não está bem definido o que é o espaço de cada um. Se o partido foi só uma barriga de aluguel, emprestou a legenda e deu autonomia. Acho que há um risco, uma visão na praça difundida em certos segmentos de fazer de seu mandato uma espécie de ONG. Eu recruto por concurso, eu consulto os eleitores online, eles decidem onde eu vou botar o dinheiro, daí presto contas a eles.
Como o senhor classifica esse mandato?
Para mim, isso é um novo tipo de clientelismo. Você tem uma clientela que contorna a relação partidária. É o mesmo que faz um pastor, por exemplo, ou um sindicalista. A ideia de que eu devo o mandato a um segmento dos eleitores e presto conta a eles é uma coisa característica do sistema representativo brasileiro. Mas o ideal é que essas figuras entrem nos partidos e tentem renovar os partidos. Essas figuras estão renovando a política, certamente, mas não estão renovando os partidos. Esse me parece o grande paradoxo.
Qual o prejuízo a longo prazo?
Estamos num processo em que, no final das contas, os partidos brasileiros estão virando instituições paraestatais, donos de uma dinheirama. Quase R$ 1 bilhão para funcionamento anual (Fundo Partidário), mais quase R$ 2 bilhões para campanhas (Fundo Eleitoral). Os partidos são controlados pelo Estado, são parquinhos, digamos assim. Por outro lado, a renovação dos partidos não acontece.
Mas aqui, quando há renovação, boa parte dos eleitos é de família de políticos.
Acho natural que uma parte da renovação aconteça por pessoas que têm a profissão dos pais. A questão central para mim é que os jovens estão abandonando as legendas. Estão entrando na política, mas não para a vida partidária. Isso não tem como dar certo. O ideal é que essas pessoas seguissem o exemplo do grupo Momentum, do Reino Unido, que adotaram uma legenda, o Partido Trabalhista. O Livres tentou fazer isso. Pena que, quando largaram o PSL, não optaram por outra legenda.
Os movimentos deveriam ter as mesmas regras dos partidos?
Não, são organizações. Nesse sentido, não se diferem tanto de igrejas evangélicas ou sindicatos que querem suas lideranças na política. Fantasias de renovação fora dos partidos não prosperam. Mesmo na Espanha, onde os movimentos ganharam força, eles foram para a vida partidária. Lamento que esses grupos tenham uma visão tão negativa da vida partidária.
A relação do presidente Jair Bolsonaro com o PSL é mais um exemplo da crise dos partidos?
Isso é singular. Grandes líderes populistas têm um grande partido atrás. Aqui, temos um líder sem vontade de organizar uma legenda. Ele não é um homem de partido, nunca foi. O que mais me chama atenção é um presidente da República não conseguir dominar um partido político. Jair Bolsonaro, com a força política dele, está praticamente sendo mandado embora do partido. Seria muito mais simples se ele tivesse feito um esforçozinho para controlar a legenda.
Isso é reflexo de quê?
Ele nunca foi comprometido com a legenda. Ele é uma pessoa que pouco deve conhecer da vida partidária. Um ano depois da vitória nas urnas, não fez nenhum movimento para fortalecer o PSL nem para dominá-lo com o grupo dele. Deixou na mão de um aliado, em (que) provavelmente ele confiava. Uma situação ambígua. Seria mais fácil o (Luciano) Bivar ser expulso.
Mas o partido é dele.
O partido era do Bivar quando ele era o único deputado. Agora, quando você tem uma maré, como foi a vitória do Bolsonaro, ele só não dominou o partido porque não quis. Agora está falando em sair porque essa sempre foi a estratégia dele. De todas as legendas com que Bolsonaro não quis se relacionar ele saiu. É sintomático que o presidente queira sair de um partido e não tenha potência para colocar para fora um político, um burocrata, digamos assim. Isso mostra uma fragilidade total do presidente nesse aspecto. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.