Os casos de graves violações de direitos humanos contra povos indígenas durante a ditadura militar no Brasil poderão ganhar uma frente especial de investigações após o encerramento das atividades da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro. Um requerimento sobre o colegiado especial deve ser encaminhado nesta semana à comissão nacional. Um de seus principais argumentos é o de que, embora os índios estejam entre as principais vítimas do período de exceção, a maioria dos casos ocorridos com eles ainda não foi investigada.
Se concordar com os termos do requerimento, a Comissão Nacional poderá incluir, no capítulo final do relatório que conterá as recomendações ao governo brasileiro sobre o que se deve fazer daqui para a frente, a proposta de uma comissão especial para os povos indígenas. Essa ideia, que já vinha sendo discutida por antropólogos e historiadores, ganhou corpo na semana passada, durante uma sessão da Comissão da Verdade de São Paulo, que tratou da questão indígena.
Na ocasião, a jornalista Memélia Moreira, autora de reportagens sobre violência contra indígenas na ditadura, relatou ter evidências de que militares utilizaram napalm para atacar aldeias na região da Amazônia. O napalm é uma espécie de gasolina gelatinosa que se tornou mundialmente conhecida após ter sido utilizada pelas tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã.
Os problemas com os militares foram registrados principalmente nas comunidades indígenas instaladas na rota de grandes rodovias construídas na época na região amazônica. Em seu depoimento à comissão estadual, Memélia disse que recolheu estilhaços das bombas de napalm durante uma visita à aldeia dos índios waimiri-atroari, na região sul do Estado de Roraima. “Eu vi, peguei e guardei um tonelzinho de napalm”, disse.
Os conflitos com os waimiri-atroari ocorreram durante a construção da BR-174, entre Manaus a Boa Vista, entre 1967 e 1977. Ainda segundo a jornalista, o napalm teria sido utilizado em pelo menos duas ocasiões, entre 1975 e 1976. “Em 1978, quando estive na aldeia deles em Santo Antonio de Abomari, encontrei restos de latas usadas para armazenar o napalm”, afirmou.
Resistência
Não é a primeira vez que surgem denúncias sobre o uso de napalm contra os waimiri-atrori – grupo indígena que à época resistiu à construção da rodovia em suas terras. Há dois anos, o teólogo Egydio Schwade, que chefiou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na época da criação da BR-174 – e mais tarde conviveu com o grupo indígena -, afirmou em entrevista que cerca de 2 mil índios desapareceram durante a construção da rodovia.
Na semana passada, após ouvir o depoimento da jornalista, o presidente da Comissão Estadual, deputado Adriano Diogo (PT), disse que vai incluí-lo no relatório a ser encaminhado à Comissão Nacional. “O capítulo reservado aos índios não está tecnicamente enquadrado como de resistência política, mas de resistência social”, explicou o parlamentar.
Para o estudioso Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, o depoimento de Memélia corrobora as denúncias sobre o desaparecimento de índios waimiri-atroari. Ainda segundo Zelic, o relato também fortalece a proposta de uma investigação mais detalhada sobre as violações cometidas contra esses povos.
A Comissão Nacional, cujas atividades serão oficialmente encerradas em 16 de dezembro, dividiu seus trabalhos em 13 grupos. O que se dedica à questão indígena é coordenado pela psicanalista Maria Rita Kehl, que já fez várias viagens à região amazônica para ouvir os índios. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.