Márcia Curi Vaz Galvão, de 43 anos, tinha 1 ano e 3 meses, militares uruguaios invadiram a casa onde morava com a mãe, a uruguaia Gladys Celina Curi Bermudez, e o pai, o brasileiro Arakém Vaz Galvão. Gladys era militante tupamaro e Arakém foi preso pelo regime brasileiro. A mãe teve tempo apenas de trocar a fralda da filha, que brincava com uma espingarda.
Somente depois de uma semana desaparecida, Gladys conseguiu fazer contato com a família. Ela ficou presa por quatro anos. Neste período, a criança morou com parentes e amigos dos pais. Quando Gladys foi solta, mudou-se com a filha por diversos países na América Latina e na Europa.
Essas são as “lembranças embaçadas” de Márcia. O relato de sua vida foi contado ontem, dia 5, na Universidade do Estado do Rio (Uerj), durante o lançamento do Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, ligado à Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-Rio) e às Clínicas de Testemunho da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. A intenção do grupo, que inclui parentes de anistiados e exilados políticos, é debater os efeitos transgeracionais da violência do Estado durante a ditadura civil-militar.
A longo prazo, a ideia é transformar a iniciativa em política pública. O objetivo é atender também às vítimas e familiares da atual violência, entendida como “resquício do período ditatorial”, segundo Vera Vital Brasil, membro da CEV-Rio.
‘Soube que’
Antes de relatar cada trecho de sua vida, Márcia dizia “soube que”, sinal de que as memórias foram construídas a partir do que parentes e amigos dos pais disseram sobre seu passado “fragmentado”. “Contar o que vivi me liberta da prisão onde fui trancada pela história e onde permaneci por décadas.”
Aos 8 anos, quando pôde voltar ao Brasil, Márcia sabia cinco idiomas, aprendidos nos locais onde morou. Hoje fala só dois. Na época, a Operação Condor vigorava no Brasil e em toda América Latina. “Um dia, já no Brasil, fui proibida de ir à escola. Ficava o dia inteiro presa em um apartamento.”
Atualmente, 150 pessoas estão inscritas na Clínica do Testemunho do Rio, que oferece ajuda psicológica a parentes de vítimas das graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988.
O músico Leo Alves Vieira, de 36 anos, neto do desaparecido político Mário Alves, não chegou a conhecer o avô materno, mas cresceu vendo a luta da mãe e da avó pelo paradeiro do desaparecido. “Me lembro de um cartaz sobre a mesa dizendo ‘Cadê o corpo do meu pai?'”. Viu também os problemas de saúde que ambas desenvolveram “por terem somatizado tanta dor” na briga com o regime.
Aos 10 anos, o músico conheceu a história do avô, dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), no livro Brasil Nunca Mais. Mário desapareceu após ser torturado no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Anos mais tarde, Leo leu sobre as torturas sofridas pelo avô, que foi empalado e não entregou os companheiros.
“Participar do grupo e falar em público (sobre o avô e a família) me fez perceber que a tortura não afetou apenas minha mãe e minha avô, mas também a mim”, disse. “Até hoje tenho momentos de oscilação: tempos em que me dedico a diversos projetos pessoais e profissionais ao mesmo tempo e outros em que paro de fazer tudo.”