‘Entreatos’ e Lava Jato: do apogeu ao ocaso

Ação do mito Lula deve passar, obrigatoriamente, pelo documentário Entreatos, lançado em 2004. Qualquer tentativa de entender o ocaso desse mito com a interrupção da era petista na Presidência desemboca nos últimos três meses da Operação Lava Jato. O salto temporal é de mais ou menos 12 anos. Os dois momentos, quando analisados lado a lado, em justaposição, trazem de maneira diversa a essência do homem e fornecem uma poderosa chave de leitura sobre o passado, o presente e o futuro de Luiz Inácio Lula da Silva.

Se no documentário do diretor João Moreira Salles sobre a campanha eleitoral vitoriosa de Lula em 2002 temos o líder conciliador, o articulador habilidoso e o operário bonachão, no conjunto da Lava Jato nos deparamos com o operário ressentido, o político raivoso (e, por isso, desastrado), o líder divisionista. Mais interessante e desafiante nesse exercício analítico, porém, é encontrar no Lula de Entreatos os traços do Lula atual. E os sinais estão quase todos lá.

Assistir ao documentário hoje, após os últimos e intensos anos da política brasileira, é como projetar na mente um filme de ficção policial cuja cena de abertura é a do mocinho com a arma fumegante na mão diante do cadáver fresco. A partir daí, rodamos a fita ao contrário, na busca de pistas que nos ajudem a compreender o provável desfecho trágico do protagonista na Lava Jato. Como o Lula de Entreatos desembocou no Lula do conjunto de grampos e do depoimento à Polícia Federal?

As primeiras e mais evidentes pistas fornecidas por Entreatos formam um valoroso registro da política pré-mensalão e pré-Lava Jato, o testemunho de um tempo em que candidatos nas campanhas eleitorais cruzavam o Brasil em jatinhos, hospedavam-se com comitivas enormes em hotéis cinco-estrelas, contratavam artistas caros para showmícios e todo mundo, ou pelo menos muita gente, se perguntava de onde vinha o dinheiro para aquilo. A resposta começou a ser dada em 2005, com a revelação do mensalão.

Confiança

José Dirceu (o poderoso), Delúbio Soares (o tesoureiro) e Sílvio Pereira (o faz-tudo) foram abatidos pela revelação da transferência de recursos oriundos do esquema montado ainda na campanha para parlamentares da base lulista. Os três também são investigados pelo Ministério Público Federal na Lava Jato, sob suspeita de terem se beneficiado do esquema de desvios de recursos e de corrupção na Petrobras. Dirceu, Delúbio e Sílvio Pereira gozam da confiança de Lula, participam de discussões a portas fechadas e deixam claro no documentário o poder que teriam no futuro governo. As investigações em curso em Curitiba nos revelam que eles participaram ativamente das nomeações para as diretorias da Petrobrás, base e origem do esquema. Mais ainda: a Lava Jato está no caminho de provar o elo entre o mensalão e o crime na estatal.

Assim, uma parte da resposta está dada. O Lula de Entreatos estava amparado por operadores políticos que se utilizavam da expectativa de poder do petista para continuar a fazer girar a engrenagem financeira que alimentaria a consolidação do mito, embalado em ternos caros, palatável às elites e aos mercados. Uma vez na Presidência, esse grupo estreitou laços com o publicitário Marcos Valério e com os operadores da Petrobrás. “Pelo panorama dos elementos probatórios colhidos até aqui e descritos ao longo desta manifestação, essa organização criminosa jamais poderia ter funcionado por tantos anos e de uma forma tão ampla e agressiva no âmbito do governo federal sem que o ex-presidente Lula dela participasse”, afirmou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em peça divulgada recentemente.

No documentário, Lula é um democrata cordial, empunhando a bandeira do respeito às instituições. Mas, quando o juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, torna público o conteúdo dos diálogos telefônicos de Lula interceptados pela Lava Jato, no dia 16 de março deste ano, sai de cena o “Lulinha Paz e Amor” de Entreatos, criado pelo marqueteiro Duda Mendonça, para entrar o raivoso e desastrado “Lula Jararaca”, que conseguiu se indispor com o Ministério Público, os juízes federais e o Supremo.

A manifestação recente de Janot, talvez o ápice contra o ex-presidente até agora na Lava Jato, ajuda a explicar frases como a coletada nos grampos da operação e que contradiz a versão cinematográfica do mito: “Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada. Nós temos um Superior Tribunal de Justiça totalmente acovardado. Um Parlamento totalmente acovardado? Somente nos últimos tempos é que o PT e o PC do B começaram a acordar e começaram a brigar? Nós temos um presidente da Câmara fodido, um presidente do Senado fodido, não sei quantos parlamentares ameaçados, sabe? E fica todo mundo no compasso de que vai acontecer um milagre e vai todo mundo se salvar”. Em outro trecho, o ataque é também direto. “Eu acho que eles (autoridades da operação) têm que ter em conta o seguinte, bicho, eles têm que ter medo.”

Há em Entreatos, também, as pistas pessoais fornecidas por Lula. Numa cena, à frente da entourage, ele diz ter passado 30 anos numa fábrica e não ter se acostumado com o macacão de operário; em contraponto, se despeja em elogios ao costume do paletó, da calça social e das belas gravatas. Falava dentro dele ali o germe do sítio de Atibaia, do tríplex de 215 metros quadrados no Guarujá, o imóvel que ele chegaria a desdenhar como sendo padrão “Minha Casa Minha Vida”, o programa criado por Dilma Rousseff para a população de baixa renda. “O prédio era inadequado porque, além de pequeno, um tríplex de 215 metros é um tríplex ‘Minha Casa Minha Vida'”, diz relatório policial. Ainda nesse aspecto, em certo momento do documentário, numa cena gravada na sala vip do aeroporto de Congonhas (São Paulo), Antonio Palocci, outro implicado na Lava Jato, lê um informe e diz: “Lula não será um presidente populista; Lula é um homem honesto e será um presidente racional”. A declaração é do banqueiro Roberto Setúbal e está no noticiário daquele dia. Todos comemoram e evidenciam certa reverência ao personagem, o capitalista que outrora fora inimigo dos trabalhadores, conforme a lógica tradicional do petismo. Mais de uma década depois, a Lava Jato nos mostra que a reverência aos empresários e ao capital virou amizade. Lula deixou o maior empreiteiro do País, Marcelo Odebrecht, reformar o sítio que ele usou por longos quatro anos em Atibaia. Lula visitou o tríplex com o executivo Léo Pinheiro, da empreiteira OAS. Mais uma vez, é difícil não escutar Janot: “Lula sabia de tudo”.

Futuro

Há ainda passagens que se tornaram clássicas no documentário, como as alfinetadas no tucano Fernando Henrique Cardoso, as brincadeiras de organizar peladas de futebol nos gramados de Brasília e as referências (muitas) à infância sofrida e à luta pela sobrevivência. E revelações: “Quando a gente não tem responsabilidade, (quando) você não está para ganhar nada, então você não mede as palavras que você fala no discurso. Mas, agora, qual é o problema? É que eu tenho de medir cada palavra”.

Mesmo elas, que soam despretensiosas, fornecem indícios sobre a maneira como tratar a oposição, o bem público e, principalmente, como se vitimizar e se escorar no populismo para se defender. A comparação entre o Lula de Entreatos e o Lula da Lava Jato não se esgota na síntese entre passado e presente do mito. Ela também diz muito sobre o futuro porque escancara a capacidade dele de se transmutar, de falar para diferentes plateias em vários ambientes. A sobrevivência é sua grande virtude. Os tempos, porém, são outros e os obstáculos para ele transpor estão fora da esfera que Lula domina, a política. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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