Especialistas em direito ouvidos pela reportagem avaliam que as condutas do presidente podem configurar crimes comuns previstos no Código Penal, mas para que exista uma ação penal junto ao STF (Supremo Tribunal Federal) é preciso uma denúncia do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, e o aval da Câmara.

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No caso da pandemia, por ser uma questão que afeta a coletividade, não é possível apresentar queixa-crime ao Supremo: isso é válido apenas para quando há uma pessoa afetada diretamente. Segundo os especialistas, um possível caminho é que a crise e a consequente pressão da opinião pública forneçam o elemento político que falta para que um processo de impeachment seja pautado.

Nesta quarta (31), após a demissão conjunta dos comandantes das Forças Armadas em consequência da saída do ministro da Defesa, líderes de oposição protocolaram um novo pedido de impeachment, por tentativa de interferência na instituição e “ameaça à democracia”.

Entenda quais são os caminhos possíveis para responsabilização do presidente.

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Quais condutas de Bolsonaro na pandemia apontam indícios de crimes comuns previstos pelo Código Penal?

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No último dia 24, a OAB nacional protocolou uma representação na PGR para que o presidente seja denunciado ao STF por crimes previstos nos artigos 132 (perigo para a vida ou saúde de outrem), 268 (infração de medida sanitária preventiva), 315 (emprego irregular de verbas ou rendas públicas) e 319 (prevaricação) do Código Penal.

As mesmas condutas, além do artigo 257 (subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento), foram apontadas em representação apresentada por ex-procuradores em janeiro. Em outra, apresentada pela AJD (Associação Juízes pela Democracia), são citados três dos crimes da representação da OAB.

Presidente da AJD, a juíza do trabalho Valdete Souto Severo diz que a representação teve como base o colapso na rede de saúde em Manaus e a falta de oxigênio em hospitais que levou pacientes à óbito.

A advogada criminalista Marina Coelho Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), analisa que o caso da capital do Amazonas, além do desrespeito do presidente às medidas de distanciamento social e a propaganda de medicamentos sem comprovação científica, apontam indícios para caracterização dos crimes.

“Não é que a pandemia foi criada pelo governo, mas a condição estrutural do Brasil hoje é resultado das omissões e das ações desgovernadas do Executivo”, diz.

Análise jurídica feita pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e pela Conectas de 3.049 normas editadas durante a pandemia em 2020 concluiu que houve uma estratégia institucional de propagação do vírus. O documento aponta a necessidade de discutir a configuração de crimes de responsabilidade, contra a saúde pública e contra a humanidade.

Professora titular da USP e uma das coordenadoras do estudo, Deisy Ventura diz que há indícios de delitos cometidos não só pelo presidente, mas por outros agentes federais em um conjunto de ações que inclui a edição de normas, obstrução a respostas locais, atraso em repasses, incitação ao desrespeito e uma campanha constante contra governadores e prefeitos, além de propaganda contra a saúde pública.

“O estudo demonstra a existência de um plano sistemático de disseminação do vírus que reflete a opção pela imunidade coletiva por contágio. É essa opção que nós consideramos que pode constituir uma série de crimes”, diz.

Como funciona o processo contra o presidente da República por crimes comuns?

Pela prerrogativa de foro, o presidente só pode ser julgado pelo Supremo. É necessária a apresentação de uma denúncia pelo procurador-geral da República à corte, que precisa do aval de no mínimo 342 deputados federais. Caso ela não seja aceita, o presidente pode responder ao processo após deixar o cargo.

O advogado Pierpaolo Bottini explica que não seria possível apresentar uma queixa-crime contra o presidente por condutas durante a pandemia, uma vez que os crimes apontados afetam a população de forma coletiva, logo, a presentação deve ser feita via Ministério Público. A queixa-crime caberia para casos em que o indivíduo é diretamente afetado –por exemplo, em crimes contra a honra.

Valdete Severo critica a falta de ação por parte de Aras diante das representações já feitas. “Há um alinhamento completo na postura do PGR com o presidente. Ele age quase como um advogado pessoal.”

Augusto Botelho, conselheiro e sócio-fundador do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), também não acredita em uma denúncia de Aras, a não ser que surja um fato completamente novo.

“Se tivesse a iniciativa que deveria ter, ele [Aras] já deveria ter feito”, afirma.

Marina Araújo, do IBCCrim, discorda que exista omissão. No caso de Manaus, o procurador-geral chegou a instaurar uma apuração preliminar para verificar a conduta de Bolsonaro e do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

“É lógico que o cargo dele envolve muita questão política e que ele pode entender o melhor momento para fazer isso [denunciar], mas que ele está comprometido a não fazer, não acredito”, diz.

A Câmara é comandada por Arthur Lira, hoje aliado de Bolsonaro, a quem cabe a prerrogativa de abrir um processo de impeachment. Essa via ainda é possível?

Especialistas avaliam que já foi preenchido o requisito jurídico para embasar um processo de afastamento do presidente, ou seja, indícios de que Bolsonaro violou a Constituição e a Lei dos Crimes de Responsabilidade (1.079/50).

Levantamento do jornal Folha de S.Paulo mostrou 23 atos ou declarações do presidente que poderiam ser usados para embasar um pedido de impeachment.

Restaria o componente político para a abertura do processo, que pode ser dado pelo agravamento da pandemia.

Augusto Botelho e Valdete Severo avaliam que a pressão por parte da opinião pública e da imprensa pode refletir no Congresso e mudar a postura de Lira e dos demais integrantes do chamado centrão, que dá sustentação à base aliada.

“[Lira] não está alheio aos anseios e à pressão da sociedade e da imprensa”, diz Botelho. O advogado destaca a pressão do mercado, como a carta em que economistas, banqueiros e empresários cobram ações diante da pandemia.

Além dela, outro elemento veio com a crise nas Forças Armadas gerada após a demissão do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo, na última segunda-feira (29), que levou à saída conjunta dos comandantes Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica).

Ao protocolarem um novo pedido de impeachment contra o presidente, os líderes de oposição afirmaram que Bolsonaro tenta controlar e utilizar politicamente o Exército, durante a pandemia.

Uma vez pautado pelo presidente da Câmara, o processo de impeachment precisa do aval de 342 deputados. Depois disso, para ser instaurado o processo, são necessários 41 votos no Senado e outros 54, na mesma casa, para que o presidente perca o mandato.

O presidente pode ser responsabilizado na esfera internacional? Em quais instâncias?

Deisy Ventura explica que Bolsonaro só pode ser processado individualmente pela jurisdição nacional e internacional. Isso significa que, se esgotados os recursos internos ou quando não há possibilidade de julgamento no próprio país, em virtude de conflitos, o presidente só pode ser punido pelo Tribunal Penal Internacional, criado para julgar crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra.

“Não há possibilidade de investigação de conduta criminosa de agentes públicos nem no Conselho de Direitos Humanos da ONU e nem no Sistema Interamericano. O que o sistema certamente fará é investigar a responsabilidade do Estado brasileiro”, diz.

No caso do TPI, a denúncia apresentada em 2020 foi temporariamente arquivada. Deisy diz que isso não quer dizer que não haja crime contra a humanidade ou genocídio. “Significa simplesmente que o tribunal não dará continuidade à investigação porque o tribunal tem critérios estritos sobre o que ele tem capacidade de investigar ou não.”

Reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que essa corte internacional recebe de 500 a 900 requisições por ano, das quais mais de 90% são descartadas.

O professor de direito constitucional Pedro Serrano (PUC-SP) afirma que um obstáculo para que isso ocorra é a falta de documentação. Ele defende a criação de uma CPI para reunir provas sobre condutas e listar responsáveis.

“No campo filosófico político e moral, Auschwitz esteve para o exercício do poder político em tempos de guerra como Manaus está para o exercício do poder político em questões sanitárias”, diz.

Para Serrano, além de apresentar denúncias junto ao TPI, é preciso uma mobilização para que a mídia internacional compreenda violações cometidas na pandemia, o que influenciaria os julgadores.

Já para Botelho, é pouco provável que uma denúncia seja aceita pelo tribunal, mas elas podem refletir em boicotes e sanções econômicas ao Brasil.

Marina Araújo se diz cética sobre essas possibilidades de criminalização e pressão, algo que afirma que só deve ser buscado quando esgotados recursos no país.

Caminhos para responsabilização

Crimes comuns

Representações à PGR apontam indícios dos seguintes delitos do Código Penal:

Art. 132: Perigo para a vida ou saúde de outrem; pena: detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Art. 257: subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento; pena: reclusão, de dois a cinco anos, e multa

Art. 268: infração de medida sanitária preventiva; pena: detenção, de um mês a um ano, e multa

Art. 315: emprego irregular de verbas ou rendas públicas; pena: detenção, de um a três meses, ou multa

Art. 319: prevaricação; pena: detenção, de três meses a um ano, e multa.

O processo: O presidente deve ser denunciado pelo PGR. Para ser julgado pelo Supremo, porém, é necessário aval da Câmara

Impeachment

O processo: Deve ser pautado pelo presidente da Câmara. São necessários 342 votos para que o processo seja encaminhado ao Senado. Ali, são necessários 41 votos para abertura do processo e 54 para o impedimento

Denúncia internacional

O presidente só pode ser criminalizado individualmente por suas condutas pelo TPI