O criminalista Nelio Machado, dono de uma das bancas de advocacia mais prestigiadas do País, com sede no Rio, disse ao Estado que está escrevendo um livro, de título Covardia, para criticar o instituto da colaboração premiada e colegas advogados que o aceitam. “Eu sou amigo desses caras, convivo com eles, mas não posso esconder a decepção por terem abdicado do direito de defesa”, afirmou em seu escritório com vista panorâmica para a Baía da Guanabara e para a pista do aeroporto Santos Dumont. Disciplinada pela Lei 12.850, de 2013, a colaboração é um importante eixo da Operação Lava Jato.

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No começo da operação, há quase quatro anos, Machado, de 66 anos e avô de dois netos, teve meia dúzia de clientes que ficariam muito famosos – entre eles Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa e Fernando Baiano. Deixou as respectivas causas quando optaram pela colaboração premiada – e por advogados que defendiam o instituto. Hoje, entre duas centenas de clientes, Machado é advogado do deputado Jorge Picciani, ex-presidente de Assembleia do Rio, que continua preso, e de Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, solto recentemente por habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça. Ambos são acusados de corrupção – o que Machado nega. “São inocentes – e se quiserem fazer delação premiada deixarão de ser meus clientes”, avisa.

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Covardia será lançado ainda neste semestre, afirmou o criminalista, adiantando pontos do extenso sumário que já organizou: antítese entre a advocacia nos tempos da ditadura militar e atual, a falácia e o despropósito da delação premiada, métodos à margem da lei, práticas medievais de escarmento… Sobre a reação dos advogados que eventualmente vestirem a carapuça, preferiu brincar: “Estou treinando boxe, e o meu cruzado de direita é muito bom”.

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O sr. está escrevendo um livro criticando a colaboração premiada, Covardia. Do que se trata?

O livro é uma comparação entre a advocacia clássica, que é a que eu faço, e os novos tempos dessa advocacia colaboracionista, que abdica das teses – como cerceamento ao direito de defesa – e busca uma solução que resolve o problema por critérios pragmáticos e não de justiça. Pouco importando a violência que se pratique quanto à equidade e consequências malévolas em relação a terceiros.

Onde está a ‘covardia’ nos advogados que trabalham com delação?

A covardia está em abrir mão da defesa. Porque defender dá trabalho, é um jogo incerto. Advocacia não é profissão de covardes, como disse o professor Sobral Pinto. O que existe hoje na advocacia criminal é que a vitória se consegue com a derrota, ou seja, com a delação. Delator e advogado levam vantagens. Mas isso é bom para a sociedade? Pretendo mostrar que não é.

O sr. defendeu presos políticos na ditadura. O que mudou entre os criminalistas de lá para cá?

A primeira coisa que me impressionou, na época da ditadura, foi a solidariedade entre os advogados em relação à inadmissibilidade da chamada de corréu como estratégia da defesa. A chamada de corréu tornou-se, depois, a colaboração premiada. Colaboração, aliás, é um eufemismo mal inspirado, porque nos leva à Segunda Guerra mundial, aos colaboracionistas na França, por exemplo.

Por que os advogados mudaram de postura?

Houve um pragmatismo. É muito mais fácil você não brigar, não enfrentar. O cliente acaba seguindo a ideia de “bom, eu vou saber o que vai acontecer comigo e vou aceitar”. Eu não excluo a possibilidade de que alguém diga além do que ocorreu, e também diga menos do que de fato sucedeu.

Muitos advogados afirmam que a colaboração premiada é um meio legítimo de defesa.

Eu discordo. É uma capitulação, porque você abdica de discutir teses fundamentais, como incompetência do juízo e cerceamento ao direito de defesa.

Por exemplo…

O rumoroso caso Lava Jato, que está sendo julgado pelo juiz do Paraná. A Petrobras fica no Rio. Isso foi colocado no Paraná com a interpretação equivocada da lei. Acabou se consolidando por uma razão muito simples: feito o acordo de colaboração, a defesa é instada a desistir de todas as suas objeções. Ou seja: valida-se ilegalmente a competência, que é matéria de ordem pública. Então é a subversão completa da ordem jurídica.

Esses e outros questionamentos não foram aceitos pela Justiça…

Os tribunais não se manifestaram de forma definitiva. É o caso do Supremo, por exemplo, que poucas vezes se manifestou sobre essas preliminares.

Qual é o problema da colaboração na hora do julgamento?

Não é julgamento. É um ritual de morte anunciada. Uma morte moral, uma morte ética, porque eu não creio que o delator tenha conforto com a sua consciência. Acho que ele será um atormentado por uma pena que independe da pena da lei.

Qual?

A pena de perceber que foi egoisticamente motivado para salvar a própria pele. O colaborador vai a juízo sei lá quantas vezes, e aquilo é como água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Os advogados passaram a fazer uma tabelinha com os órgãos de acusação. Passaram a ser auxiliares da repressão, da punição a qualquer modo, tentando livrar a cara do seu cliente, ainda que isso custe a débâcle do outro.

Como é que se chegou a esse grande número de delatores?

Não raro, com ameaças a familiares. No início concentrando-se em três ou quatro advogados, que desfrutavam talvez de um acesso diferenciado perante o Ministério Público.

O livro cita nomes de advogados?

Os nomes são facilmente identificáveis. Basta ver quantas vezes a (Beatriz) Catta Preta fez, quantas vezes o (Antonio) Figueiredo Basto fez. A verdade nua, dura e crua, lamentavelmente, é que a maior parte dos que afirmavam peremptoriamente que não havia a menor possibilidade de seguir esse modelo, essa gente silenciou ou seguiu o caminho que é o oposto ao que disseram, até em documentos como aquele manifesto em que criticaram o lado autoritário da Lava Jato.

Qualquer um deles pode dizer que o sr. é que está errado.

Eu respeitarei a opinião deles, e espero que respeitem a minha.

Que balanço o sr. faz da Lava Jato quase quatro anos depois?

A Lava Jato faz muito mal ao País, porque age fora do devido processo legal, e das garantias fundamentais. O desserviço é maior que qualquer benesse.

E o combate à corrupção?

Existem monstros que foram criados de forma artificial. Há algum tempo era o comunismo. Depois, o narcotráfico. Hoje, é a corrupção. Sempre existirá, e tem que ser combatida de forma inteligente. E não transformar a corrupção na referência nacional. A fome é mais importante. A saúde é mais importante, a educação é mais importante. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.