O presidente Jair Bolsonaro chamou nesta quinta-feira (30) de “política” e de “canetada” a decisão do ministro Alexandre de Moraes (STF) que, um dia antes, anulou a nomeação de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal. “Eu respeito a Constituição e tudo tem um limite.”
Na saída do Palácio da Alvorada, antes de embarcar para Porto Alegre (RS), Bolsonaro argumentou que “não engoliu” a decisão de Moraes e que o ministro do STF quase gerou uma crise institucional.
“Se [Ramagem] não pode estar na Polícia Federal, não pode estar na Abin [Agência Brasileira de Inteligência]. No meu entender, uma decisão política”, declarou.
Na quarta (29), após Ramagem ter sido barrado pelo Supremo, o presidente revogou a nomeação de seu indicado, que é amigo do clã Bolsonaro. O mandatário também anulou a exoneração de Ramagem da Abin, cargo ocupado por ele anteriormente.
O presidente reiterou ainda que a AGU (Advocacia-Geral da União) vai recorrer da decisão judicial, mas disse que, diante da ação do Supremo, o governo busca um novo nome para o comando da PF.
“Tenho outros nomes. Vou entrar em contato com pessoas que eu conheça para que apareça um nome, que a gente quer que a PF faça o seu trabalho sem interferência”, declarou. “Eu pretendo o mais rápido possível, sem atropelos, indicar o diretor-geral [da PF]. Quero o mais rápido possível dar tranquilidade para a Polícia Federal trabalhar.”
Em outra investida contra Moraes, Bolsonaro cobrou “rapidez” do ministro para analisar eventuais recursos e para liberar o julgamento da ação no Plenário da Corte.
“Não justifica a questão da impessoalidade [um dos argumentos usados pelo ministro na sua decisão]. Como o senhor Alexandre de Moraes foi parar o Supremo? Amizade com o senhor Michel Temer, ou não foi?”, disse o presidente, em uma referência à indicação de Moraes ao STF pela então presidente da República.
“Agora tirar numa canetada e desautorizar o presidente da República, com uma canetada, dizendo em [princípio da] impessoalidade? Ontem quase tivemos uma crise institucional, quase. Faltou pouco”, disse Bolsonaro. “Eu não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes.” “Não engoli. Não é essa a forma de tratar o chefe do Executivo”, queixou-se o mandatário.
Na entrevista desta manhã, Bolsonaro se recusou a responder a qualquer pergunta que não fosse feita pela rede CNN Brasil. Repórteres de Folha de S.Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo e portal G1 estavam no local e questionaram o mandatário, mas ele não respondeu e se referiu a um dos profissionais presentes como “fake news”.
A uma primeira pergunta de um repórter de O Globo, Bolsonaro rebateu: “Não vou te responder, não vou te responder. Tu é fake news, eu só vou atender essa senhora aqui [referindo-se à repórter da CNN Brasil]. Ponto final”.
Em seguida, após duas perguntas da Folha de S.Paulo, o presidente respondeu: “Eu vou atender só essa senhora que está aqui”, disse. “Rapaz, pode ficar quieto? Não atrapalha a entrevista. Já falei para você ficar quieto, só vou atender a senhora aqui”.
AMIZADE
Em outra defesa da nomeação de Ramagem, Bolsonaro disse que relações de amizade não constam como “cláusulas impeditiva para alguém tomar posse” em cargo público.
Ele repetiu que conheceu Ramagem após a eleição presidencial, quando o delegado da PF assumiu a coordenação da segurança do então presidente eleito. “Por que eu não posso prestigiar uma pessoa que, além do mais, eu conhecia com essa profundidade? Relação de confiança”.
Bolsonaro também criticou seu e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, que na semana passada pediu demissão e acusou o mandatário de querer trocar o diretor-geral da PF para interferir politicamente na corporação e para ter acesso a relatórios de inteligências. Para Bolsonaro, Moro “deixou a desejar” como ministro.
“O ônus da prova acaba a quem acusa. Nenhum superintendente [da PF] foi trocado, eu sugeri duas superintendências, ele não concordou. [Moro] passou a ser o dono de tudo, e não aceitava qualquer sugestão. O ego falou mais alto a vida toda dele”, disparou. “Ninguém nega o trabalho do Moro na Lava Jato, lá atrás. Um excelente juiz. Mas como ministro, lamentavelmente, deixou a desejar. Até privilegiando o pessoal que tava no Paraná, sem querer desmerecê-los. Mas só o pessoal do Paraná”.
Pouco depois, em entrevista à rádio Guaíba, Bolsonaro disparou novas críticas contra Moraes. “Não vou admitir eu ser um presidente pato manco, refém de decisões monocráticas de quem quer que seja. Não é um recado, é uma constatação ao senhor Alexandre de Moraes”.
Na mesma entrevista, o mandatário disse não temer sofrer um processo de impeachment. “De jeito nenhum. O homem que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde. Que venha o impeachment um dia, mas um impeachment [baseado] em fatos. E não… Um dos pedidos, ou vários pedidos têm [como justificativa] que eu não apresentei o meu exame de vírus. É um absurdo. Baseado no quê? Qual a materialidade? Não tem materialidade.”
A decisão de Moraes se baseia, principalmente, nas afirmações de Bolsonaro de que pretendia usar a PF, um órgão de investigação, como produtor de informações para suas tomadas de decisão.
O ministro concedeu liminar (decisão provisória) a uma ação protocolada pelo oposicionista PDT, que alegou “abuso de poder por desvio de finalidade” com a nomeação do delegado para a PF.
Moraes destacou que sua decisão era cabível pois a PF não é um “órgão de inteligência da Presidência da República”, mas sim “polícia judiciária da União, inclusive em diversas investigações sigilosas”.
Na decisão, o ministro afirmou haver “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”, acrescentando que, “em um sistema republicano, não existe poder absoluto ou ilimitado, porque seria a negativa do próprio Estado de Direito”.
Ramagem chefiou a segurança de Bolsonaro durante a campanha de 2018, tornou-se amigo da família e virou diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
No sábado (25), a Folha de S.Paulo mostrou que uma apuração comandada pelo STF, com participação de equipes da PF, tem indícios de envolvimento de Carlos em um esquema de disseminação de fake news.
Para a maioria dos especialistas ouvidos pela reportagem, foi correta a decisão de Moraes pela suspensão do ato. De acordo com eles, o poder de nomeação do presidente não é absoluto e deve respeitar as regras previstas pela Constituição, como impessoalidade, moralidade e legalidade.
Não é a primeira vez que o Judiciário suspende nomeação discricionária da Presidência da República. Isso já ocorreu na ocasião da nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como ministro da Casa Civil pela então presidente Dilma Rousseff (PT) e também de Cristiane Brasil (PTB) como ministra do Trabalho durante a gestão de Michel Temer (MDB).
Há quem afirme, no entanto, que seria preciso haver provas mais contundentes para que a nomeação fosse anulada neste momento. O professor de direito constitucional da USP Elival da Silva Ramos vê ativismo judicial na decisão e afirma que ela cria um precedente ruim.
Para ele ainda não há provas suficientes de que a nomeação de Ramagem seria abuso de poder, mas apenas indícios. Segundo ele, apesar de a liminar (decisão provisória) poder ser concedida sem provas cabais, Ramos defende que, por se tratar da suspensão de um ato discricionário, seria preciso haver provas mais maduras.
Ainda na tarde de quarta-feira, Bolsonaro desautorizou a AGU e disse que vai recorrer da decisão do ministro do STF. Mais cedo, a AGU havia divulgado nota pública na qual afirmou que não recorreria da suspensão da posse.
“É dever dela [AGU] recorrer”, disse Bolsonaro. “Quem manda sou eu e eu quero o Ramagem lá”, disse Bolsonaro, que, momentos antes, em solenidade no Palácio do Planalto, havia afirmado que seu sonho de nomear o delegado para o cargo de diretor-geral “brevemente”.
A decisão de Moraes entra para a série de reveses que a corte impôs ao governo federal nos últimos dois meses e mantém pressão do tribunal sobre Jair Bolsonaro. Desde que a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou pandemia do novo coronavírus, em 11 março, o STF contrariou os interesses do Executivo em ao menos 12 ações.
O despacho de Moraes sobre a PF foi na mesma linha. Esse caso, porém, revelou um componente a mais na relação entre os Poderes, na avaliação de ministros de tribunais superiores.
Ao suspender a nomeação do escolhido de Bolsonaro para comandar a corporação, eles avaliam nos bastidores que Moraes um mandou recado claro de que a corte não aceitará interferência na PF, sobretudo em dois inquéritos sob sigilo: os que investigam a organização de atos pró-intervenção militar e a disseminação de fake news, que tem um filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), na mira como suposto articulador de um esquema de disseminação notícias falsas.
Carlos é o filho mais próximo de Ramagem. As duas investigações são caras para uma ala do STF.
Desde que o ministro Dias Toffoli, presidente da corte, instaurou o inquérito sobre notícias falsas contra ministros do STF, em março de 2019, ele foi alvo de críticas de procuradores e investigadores ligados à Lava Jato.
Toffoli, porém, sempre fez questão de defender a legalidade da medida para levá-la adiante. Na visão dele e de outros ministros, a investigação é importante para elucidar a rede de ataques que os atinge e conter esses disparos.
Essa apuração foi muito criticada por juristas e pela militância bolsonarista, mas defendida pelo governo federal. As críticas apontavam que o STF não poderia ter agido de ofício, ou seja, ter determinado a abertura de inquérito sem que tivesse sido provocado pela Procuradoria-Geral da República, como é a regra do Judiciário.
A Advocacia-Geral da União, porém, manifestou-se contra o arquivamento do caso. Nesta quarta, logo após a decisão de Moraes, a leitura de atores do Judiciário foi a de que o ministro traçou uma linha de até onde Bolsonaro pode ir.
Houve inclusive a avaliação de que o STF poderá autorizar diligências da PF nos próximos dias contra integrantes do esquema de fake news, para mostrar que não recuará.
Essa decisão não foi o primeiro recado do ministro ao Palácio do Planalto em relação à autonomia da PF. No mesmo dia em que Moro acusou Bolsonaro de interferir na corporação, na última sexta (24), Alexandre de Moraes determinou à PF que não troque os delegados responsáveis pelas investigações dos atos pró-ditadura e a de notícias falsas na internet.
Apesar de o presidente não ser oficialmente investigado, ele participou dos atos e, se houver indícios de que ele ajudou a organizar os protestos, poderá virar alvo das apurações.
ENTENDA A DECISÃO DO SUPREMO
Nomeação para a PF
– O ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para o comando da PF após o PDT entrar com mandado de segurança alegando “abuso de poder por desvio de finalidade” no ato de Jair Bolsonaro.
– O magistrado baseou sua decisão no comportamento do chefe do Executivo. Segundo o ministro, há elementos que apontam o interesse de Bolsonaro em escolher para o comando da corporação alguém que pudesse fornecer acesso a informações privilegiadas. O próprio presidente admitiu interesse pessoal em ações da PF, em pronunciamento após a demissão de Sergio Moro.
– Para o ministro do STF, houve “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público” na nomeação. “Em um sistema republicano, não existe poder absoluto ou ilimitado (…)”, acrescentou.
– Alexandre citou ainda acusações do ex-juiz contra o presidente. “[Moro] afirmou (…) que o presidente da República informou-lhe da futura nomeação (…), para que pudesse ter ‘interferência política’ na instituição, no sentido de ‘ter uma pessoa do contato pessoal dele’, ‘que pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência'”.
– Ramagem é amigo dos filhos de Bolsonaro. Sobre essa relação, o ministro afirmou que o princípio da impessoalidade “exige do administrador público a prática do ato somente visando seu fim legal, de forma impessoal”.
RELEMBRE OUTROS CASOS
Lula
Dilma Rousseff (PT) tentou nomear Lula para ser ministro da Casa Civil, em março de 2016, antes do impeachment. Gilmar Mendes, do STF, impediu a posse, dizendo entender que havia um desvio de finalidade na nomeação. O magistrado concluiu na época que a intenção do ato era impedir a prisão de Lula. Mais tarde, conversas de Lula gravadas pela PF e reveladas pela Folha de S.Paulo colocaram em xeque essa tese.
Cristiane Brasil
Em janeiro de 2018, a ministra Cármen Lúcia, na época presidente do STF, suspendeu a posse da então deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ), filha do ex-deputado Roberto Jefferson, para o comando do Ministério do Trabalho. A ministra acolheu “parcialmente” reclamação de um grupo de advogados, que chamou de “grande imoralidade” a nomeação, porque Cristiane já tinha sido condenada na Justiça do Trabalho.
Moreira Franco
Em fevereiro de 2017, a nomeação de Moreira para a Secretaria-Geral da Presidência chegou a ser suspensa por juízes federais. O argumento era que a escolha de Michel Temer visava proteger o aliado, citado por executivos da Odebrecht em delação premiada com a PGR. A AGU reverteu as decisões.