O foro especial concedido ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que o próprio TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) reconheceu ser inédito, completa 80 dias sem previsão de julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal).
Relator do processo, o ministro Gilmar Mendes sinalizou a interlocutores que levará a discussão para a Segunda Turma do Supremo, mas ainda não definiu uma data para a análise do caso.
Enquanto isso, a defesa do senador trabalha para convencer integrantes da corte a rever a jurisprudência de restrição do foro, e o presidente Jair Bolsonaro mantém relação próxima e evita brigas com Gilmar.
Reservadamente, uma ala do tribunal demonstra simpatia à tese que pode beneficiar Flávio e lembra que o tribunal até já tomou decisão parecida com o pedido do parlamentar.
A demora em julgar o tema é outro fator apontado nos bastidores como um indício de que há uma articulação para construir uma maioria em favor de Flávio.
O filho do presidente Bolsonaro é investigado pela suspeita de ter liderado uma associação criminosa para desviar parte dos salários dos servidores de seu gabinete como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, prática conhecida como “rachadinha”. Flávio integrou o parlamento fluminense de 2003 a 2018 e teve Fabrício Queiroz, hoje preso, como uma espécie de chefe de gabinete.
O debate no STF sobre a situação judicial de Flávio gira em torno do que é chamado de mandatos cruzados, que discute casos em que políticos trocam de função, mas se mantêm em um cargo com a prerrogativa de foro.
A controvérsia chegou ao Supremo após o Ministério Público do Rio de Janeiro recorrer da decisão tomada em junho pela 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ de tirar a investigação contra Flávio da primeira instância.
Como os fatos investigados ocorreram quando ele era deputado estadual, os desembargadores entenderam que o processo deve ser conduzido pelo órgão especial do TJ-RJ, responsável por apurar delitos de parlamentares estaduais.
O MP-RJ, no entanto, alega afronta à jurisprudência do STF, que, em maio de 2018, restringiu o foro a crimes cometidos durante o mandato e relacionados à função pública.
Caso o STF confirme a concessão de foro ao senador, poderá ganhar força a tese de anulação das provas colhidas quando a investigação estava sob responsabilidade do juiz primeira instância Flávio Itabaiana.
O ministro Felix Fischer, relator do caso no STJ (Superior Tribunal de Justiça), já rejeitou duas contestações do senador às provas, quando o advogado do parlamentar era Frederick Wassef.
O julgamento dos recursos da defesa contra os despachos monocráticos (individuais) de Fischer estava marcado para esta terça-feira (15), mas o caso foi retirado de pauta. Ainda não há nova data para análise.
Após a saída de Wassef, o advogado Rodrigo Roca assumiu a defesa do filho do presidente e questionou a competência do juiz Flávio Itabaiana, sem tratar dos elementos colhidos até aqui. Nada impede, contudo, que isso seja suscitado em um segundo momento se for confirmada a condução das investigações na segunda instância.
O órgão acusador afirma que o processo deve correr em primeiro grau pelo fato de Flávio já ter deixado o cargo de deputado. Mas a Segunda Turma do Supremo, que deve analisar o caso, já deu uma decisão similar ao que pede o senador.
O colegiado rejeitou o envio à primeira instância de uma investigação contra Gleisi Hoffmann (PT-PR) e manteve o tratamento diferenciado a ela mesmo tendo trocado o cargo de senadora, que ocupava na época do suposto delito, pelo de deputada.
A diferença dos processos é que ambos os mandatos de Gleisi atraem a competência do STF. No caso de Flávio, ele saiu da condição de deputado estadual, para a qual a responsabilidade de julgamento é do TJ-RJ em segunda instância, e se tornou senador, que fica no Supremo.
O desejo de Flávio é que o STF mantenha o entendimento da 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ e assegure o foro relativo ao mandato anterior. Assim, o senador escapa do juiz Flávio Itabaiana, que vinha conduzindo o processo em primeira instância e é considerado um magistrado da ala punitivista da Justiça.
Uma decisão em favor do senador poderia até forçar uma discussão mais ampla no plenário sobre o tema. A PGR (Procuradoria-Geral da República), inclusive, defendeu a rejeição do recurso da Promotoria e afirmou que deve haver uma mudança de entendimento sobre o tema no STF.
Além da questão do filho do presidente em específico, a ideia de rediscutir o foro é reforçada por uma ala do tribunal que defende a necessidade de preencher lacunas que restaram da decisão que restringiu o benefícios aos políticos.
As operações policiais dentro do Congresso determinadas por magistrados de primeiro grau e o debate sobre até que ponto a apreensão em gabinetes limita o exercício do mandato já levaram ministros a darem decisões individuais conflitantes em casos parecidos.
Outro cenário possível, porém, também aponta que o STF pode sequer se aprofundar no tema. Não está descartado que o foro de Flávio seja mantido por um argumento processual.
Logo após a decisão da 3ª Câmara Criminal, o MP-RJ entrou no STF com uma reclamação, tipo de processo que só pode ser apresentado quando há evidente ofensa à jurisprudência do STF.
Por se tratar de uma ação excepcional, os requisitos de tramitação são mais rígidos. E, como o MP-RJ não entrou com recurso especial ao STJ nem com recurso extraordinário ao STF contra decisão da 3ª Câmara Criminal, a reclamação do senador pode ter perdido o objeto.
A Promotoria até protocolou no TJ-RJ o pedido para levar a discussão aos tribunais superiores, mas fora do prazo. Em 11 de agosto, o tribunal emitiu uma certidão que informa que o MP perdeu o prazo para recorrer.
Como consequência da certidão de intempestividade, em tese o TJ não poderia se debruçar sobre pedido do órgão acusador para que a decisão seja submetida ao STJ e ao STF.
Como isso ocorreu há mais de um mês e Gilmar Mendes não declarou a perda de objeto da ação de Flávio, a aposta nos bastidores é que o ministro deve sim julgar o tema, mas ainda procura o momento mais adequado para levar o caso à segunda turma.
A defesa do senador, inclusive, acredita que tem mais chances no colegiado do que no plenário do Supremo.
O recurso foi apresentado pelos advogados do filho do presidente em 29 de junho. Não houve sorteio, como ocorre geralmente, porque Gilmar tornou-se o relator natural do caso depois de ter suspendido a tramitação da investigação de primeira instância no ano passado.
Ao receber a ação, Gilmar pediu esclarecimentos ao TJ. O desembargador Antônio Carlos Amado, presidente da 3ª Câmara Criminal, respondeu ao questionamento e disse que a concessão do foro a Flávio pode ser inédita, mas não foi absurda, inadequada nem desrespeitou ou ofendeu a jurisprudência da corte.
A decisão da 3ª Câmara Criminal surgiu em um momento bom para Flávio, uma vez que o juiz de primeira instância tinha avançado em busca de provas ao mandar prender preventivamente Fabrício Queiroz.
Ex-assessor de Flávio e policial militar aposentado, ele seria o responsável por recolher os pagamentos dos funcionários do então deputado estadual. Queiroz é amigo de Jair Bolsonaro desde 1984.
Assim, caso seja mantida a decisão do tribunal, Itabaiana continuará afastado da condução do processo, que passou para o Órgão Especial do TJ, formado por 25 desembargadores.