“Antes ser louco acompanhado de muitos, do que sensato sozinho, dizem os políticos”

Baltazar Gracián

Ressalvada a condição extremada de determinados acontecimentos contemporâneos, o Estado brasileiro navegou incólume ante as alterações profundas ocorridas no espaço internacional. Porém, negar os efeitos produzidos pelas modificações ocorridas no cenário internacional equivaleria a um grande equívoco, apesar de o Brasil não ter sido seriamente afetado por elas no decorrer do século XX. Como exemplos dessa não participação no processo imperialista do começo do século, podemos citar que o país não esteve drasticamente envolvido com as duas grandes guerras nem tampouco esteve envolvido em conflitos bélicos regionais, não orbitou de forma relevante nos eixos polares da Guerra Fria, não ascendeu à condição de possuidor de armas nucleares, seguiu um modelo de capitalismo de Estado periférico e tardio, não participou de maneira relevante das decisões política internacionais, não obteve uma condição de líder político na América Latina, não ampliou sua participação no mercado internacional e tampouco melhorou seus índices humanos e sociais. A percepção insossa acerca da condição política brasileira reflete sua condição periférica nos campos de ação da política internacional. De toda forma, seria patético exigir ao Estado uma atuação positiva internacional, ao tempo que internamente a tetraplegia da inação política se destaca.

Durante o período militar recente, a política externa brasileira permaneceu estruturada sobre parâmetros relativamente bem definidos. Aparentemente a política externa do Estado seguia `objetivos nacionais permanentes’ e as questões circunstanciais não figuravam como motivadores relevantes. No governo Castelo Branco (1964-1967), a identificação com o Estados Unidos e a sua política de alinhamento conformava a tônica da política externa brasileira. No período que inicia em 1967 e segue até 1974 – Costa e Silva, Junta Militar e Médici – ocorre um retorno à chamada diplomacia dos interesses nacionais, marcados por um discurso ligado às fronteiras ideológicas e ao fortalecimento do Estado. O `pragmatismo responsável’ do governo Geisel (1974-1979) representou um período curioso e ousado. Sob a égide do governo Figueiredo, a diplomacia universalista foi conduzida, e as relações hemisféricas – notadamente América Latina – foram consideradas prioritárias. O modelo comum no período militar era baseado na construção de um suporte para o desenvolvimento econômico industrial. O `projeto nacional’ pretendia levar o país à condição de potência média, discussão presente nos discursos militares. Tal política permeou, em certa medida, o período Sarney, que introduziu as idéias da inserção internacional com base no regionalismo econômico, e teve de adaptar-se às alterações estruturais internacionais.

Recentemente a política externa brasileira foi marcada por uma proeminência das relações internacionais econômicas em detrimento da articulação de um feixe de ações que conduzam o Estado a uma inserção internacional com o fortalecimento estratégico. O fim dos conflitos ideológicos limitou a atuação dos Estados que não no espaço econômico. A superestimação da agenda econômica fragilizou a grande maioria dos Estados periféricos, e trouxe à tona a questão do protecionismo, do livre mercado e do institucionalismo econômico. Os `choques liberais’ e a agenda positiva com os EUA marcaram o período Collor. Itamar Franco prestigiava as idéias desenvolvimentistas, contudo, as preocupações relacionadas à estabilidade econômica limitaram as posturas governamentais.

Na era Cardoso a `diplomacia presidencial’ mostrou-se dinâmica, mas subordinada e temerosa ao mesmo tempo. Este período foi profundamente marcado pela capacidade de articulação política do presidente, mas não refletiu num desempenho melhor para a política externa brasileira. Nenhuma identidade política foi criada no período e não se estabeleceu uma planificação do rumo estatal. Objetivamente, a estabilidade econômica centrou a atuação do Estado e as agendas não-econômico-financeiras foram reduzidas significativamente. A inserção ou projeção brasileira no cenário internacional poderia ser vaidosamente citada por Cardoso com uma grande conquista do seu governo. A estratégia de inserção brasileira demonstra um certo ranço das idéias do `futuro glorioso’, acrescido das noções, possivelmente demonstráveis, de potência média recentemente industrializada em contrapartida aos índices de desenvolvimento humano pré-civilizatórios. A ausência de uma identidade própria cria empecilhos na constituição de uma política coerente para atuação internacional. Tal afirmação decorre da idéia, há muito propalada pelas elites brasileiras, de que o Brasil deveria ocupar um lugar junto aos países líderes do mundo e também da dificuldade de avaliar de maneira pragmática as possibilidades de inserção e atuação do país no sistema internacional, marcada pelo desejo utópico de grandeza.

Que efeito um comportamento inconsistente pode acarretar para o Estado brasileiro, no que tange a sua inserção num mundo pretensamente formado por um governo global? O comprometimento com todos os fóruns internacionais e a postura de concentração de interesses parece ser a dinâmica da atual postura do Estado. Contudo, nada disso refletiu num ganho para o mesmo. A participação de Cardoso – ao lado de Clinton, Blair, Jospin, Schroeder, D’Alema – na reunião da chamada `Terceira Via’, na Itália em novembro de 1999, animou a vaidade governamental, soou desconsertado, mas representou o signo da política externa brasileira, marcado pelo prestígio pessoal de Cardoso.

A alguns meses da posse no novo governo, tornou-se lugar comum afirmar que o futuro presidente possui diretrizes muitos semelhantes ao do atual governo e que o tom político de uma política externa deverá ser identificando com a manutenção de acordos, contratos e tratados. Objetivamente os planos do governo Lula não inovam, não há grandes diferenças entre a plataforma do novo governo e as pretensões não realizadas do governo Cardoso. Ambos os programas discutem problemas pontuais que afetam o desenvolvimento do Estado brasileiro. De qualquer forma, não parece adequado acreditar que o plano de governo possa ser o limite ou mesmo a base da ação política do novo governo. Lula segue bem assessorado no que tange aos quadros destinados à política externa. Hipoteticamente o governo Lula deverá trazer novos velhos nomes para o primeiro escalão, contudo, não se pode olvidar do poder institucional do Ministério das Relações Exteriores e de seu histórico combativo. O instrumento diplomático brasileiro é referido como sendo associado à excelência na qualidades dos trabalhos, no potencial dos integrantes do staff e nas boas qualidades pessoais. Esta autocomplacência constitui-se num sério problema já referido por muitos críticos. As qualidades do corpo diplomático são respeitáveis, contudo, a auto-avaliação, o aperfeiçoamento, a ampliação dos espaços de atuação mereceriam uma preocupação elevada do novo governo. De qualquer maneira aguarda-se do novo governo uma postura menos servil aos interesses internacionais, pragmática, voltada para as agendas não-utópicas e coadunada com a manutenção de interesses gerais de desenvolvimento do Estado. Não será uma tarefa facilmente exeqüível, mas sempre resta um acreditar.

Leonardo Arquimimo de Carvalho é coordenador do Curso de Direito das Faculdades Assis Gurgacz.

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