1. O homem pode se enganar a respeito do que seja melhor, mas quer sempre o melhor para si e sua família, e a fim de consegui-lo está disposto a grandes sacrifícios. Alguns homens querem o melhor para si mesmos e suas famílias, mesmo que isso represente o pior para os demais. Outros, porém, têm a noção de que vivem em sociedade. Querem portanto o melhor para si mesmos, para suas famílias e para a sociedade. Há homens que não têm família. Mas é impossível pensar o homem sem a sociedade, mesmo que nem sempre tenha lugar dentro dela. A política poderia funcionar melhor, mas começa a funcionar bem quando os homens têm seus lugares dentro da sociedade. Erra aquele que, embora desejando o melhor para si mesmo e para sua família, não busca melhorar a sociedade. Alguns, ao contrário, para isso estão dispostos a grandes sacrifícios, e nessa luta se dignificam. Em política esse é o marco mais tradicional e abrangente, que os separa dos conservadores.

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2. Quem luta pelo melhor para a sociedade não pode cometer esse engano: imaginar que existe a sociedade ideal, e querer chegar hoje na linha do horizonte de amanhã. O caminho de amanhã só se abre depois de aberto o caminho de hoje, e em cada passo está toda a caminhada. O homem de esquerda é um homem do ideal, mas não é um idealista. Sabe que o melhor é fruto do trabalho; ele é, por isso, um homem da história, da realidade e do trabalho.

3. Independentemente do seu grau de instrução, cabe a cada homem decidir o que é melhor para si mesmo. Se for sábio, compreenderá que está sujeito a errro, que deve reavaliar constantemente suas opiniões, que precisa do seu senso crítico não só com relação à sociedade mas principalmente com relação a si mesmo, que deve resguardar-se quanto à própria subjetividade, e que lhe é útil aprender com a experiência dos outros. É adequado aconselhar-se com quem entende das coisas, mas age mal quem deixa a cargo de outrem decidir sobre o que é melhor para si mesmo (já disse o filósofo que, quem faz isso, não pode se queixar depois de ser esmagado como um verme). E a ninguém, por mais esclarecido que seja, é permitido decidir o que é melhor para outrem, ainda que este se encontre a ponto de cometer um erro grave. Primeiro porque, mesmo sendo acurada sua decisão, não estaria fazendo bem àquele; segundo porque estaria pondo, sobre as próprias costas, um fardo que não lhe pertence. A solidariedade, a disponibilidade, são seus limites quanto ao bem do outro. Embora nada nos garanta que sua decisão seja a melhor, cabe a cada família decidir sobre o que é melhor para si mesma. E cabe igualmente, à sociedade, decidir sobre o que é melhor para si mesma. À base dessas discriminações encontra-se o princípio democrático, que assim se enuncia: legitimadas para tomar as decisões que lhes dizem respeito são as pessoas a quem elas afetam (?quod omnes tangit, ab omnibus approbetur?).

4. Como se percebe, o princípio democrático nada tem a ver com a eficiência. Se não fosse assim, os mais instruídos deveriam tutelar os menos instruídos. E o governante, em cujas mãos se enfeixaria o comando da sociedade, seria o mais instruído e eficiente de todos. Eficiência é noção moderna, ligada ao desempenho dos maquinismos e à hegemonia do econômico; a cada dia que passa mais exigimos das pessoas, dos serviços, das rotinas, o mesmo nível de eficiência que se espera e geralmente se obtém de uma aeronave durante o vôo. Podemos dizer que um assaltante é eficiente na medida em que obtém êxito, e o mesmo do político que se elegeu comprando votos, do profissional que frauda licitações, do jornalista que vende notícias mentirosas, do milagre econômico que bóia na censura, do regime que garante a ordem suprimindo o habeas corpus e impondo a tortura. No avesso de seus aparentes êxitos, porém, há sempre muitas vítimas. Só é socialmente eficiente a ação que a curto e longo prazo produz os melhores resultados, no contexto dos fatores e interesses envolvidos, como se verificaria num paralelogramo de forças ou num quadro de equilíbrio. O mensageiro que chegou depressa mas atropelou alguém no caminho, compara-se ao executivo que pagou, com seu divórcio, a ansiada promoção. Eis um fato: o esportista que se dopou tem vantagem sobre aquele que concorreu honestamente. Isto não significa: a) que o homem honesto não tem chance de prevalecer sobre o desonesto; b) que o homem honesto deve abandonar a competição. O que desejo assinalar é o seguinte: a) à base da decisão pela eficiência há sempre uma opção valorativa, que coincide com a finalidade social da ação; b) a maioria dos participantes de um jogo tem interesse na existência de regras iguais para todos, sem as quais a tendência de qualquer disputa seria descambar para a fraude e a violência. Há, no gosto popular, uma simpatia pelo homem ladino, pelo esperto mitificado na figura de Pedro Malasarte. Mas o político de esquerda tem o apoio da maioria ao lutar pelo estabelecimento de regras claras, que permitam a vitória do melhor e a realização do interesse comum.

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5. A começar de sua extensão à prática social, desenrola-se o arco semântico do termo democracia, dificultando a percepção de sua raiz. Diz-se, por exemplo, que só há democracia quando, além da eleição do governante, há oportunidade de participação no governo. Diz-se ainda que uma pessoa é democrática quando não impõe sua vontade, quando reconhece e respeita os demais, quando é aberta ao diálogo e considera natural o dissenso, quando sendo encarregada de decidir com relação ao grupo ouve a opinião dos seus membros. Esse arco semântico é elástico. Castoriadis, por exemplo, afirma que ?a democracia é o regime explicitamente fundado sobre a doxa, a opinião, a confrontação das opiniões, a formação de uma opinião comum. Aí a refutação das opiniões de outrem é mais do que permitida e legítima, ela é a própria respiração da vida pública.? E Piaget sustenta que a descoberta da democracia, pela criança, ocorre no momento em que, deixando de acreditar na eternidade e transcendência das regras, ela percebe que pode mudá-las. Vê-se que a democracia é inseparável do liberalismo. Sendo cada homem senhor dos seus próprios fins, à base da sociedade ideal está a garantia, a todo ser humano, de perseguir seus fins sem intercorrência dos demais. Donde a questão básica do Direito: o que é possível exigir dos indivíduos sem ofensa à sua singularidade (isto é, à capacidade de determinação e persecução dos seus próprios fins)? O liberalismo é forte corrente moderna de pensamento e ação, ligada tanto ao iluminismo quanto à resistência contra a intolerância religiosa e a opressão política. Comparadas com a sociedade moderna, as sociedades do passado, com poucas exceções, aparecem como essencialmente monolíticas sob os aspectos étnico, nacional, religioso, cultural. No ocidente, após a inquisição e as guerras religiosas, a lenta introdução de um princípio de tolerância, que avança desde a simples aceitação das diferenças até a postulação do pluralismo, mostra-se não apenas como inevitável, mas como algo desejável. A sociedade liberal é neutra quanto a ações que traduzem opções pessoais lícitas (inócuas com relação a outrem). A adoção do liberalismo, porém, não representa o abandono de todo projeto de justiça social: significa a valorização da dignidade da pessoa humana, com a conseqüente renúncia à utilização do governo como instrumento de imposição de uma determinada concepção de vida.  

6. Cada um costuma decidir, com relativa ligeireza, sobre o que é melhor para si mesmo, e o primeiro impulso nos leva a agir da mesma forma quando se trata de decidir sobre o que é melhor para a sociedade. Esse porém é um complexo processo de decisão, que oferece uma série de dificuldades. Na democracia o sujeito das decisões é o povo. Assim, quanto maior o número das pessoas politizadas, que compreendem a importância de sua participação política, melhor. Entretanto, para haver democracia não é preciso que todos participem das decisões fundamentais, ou que todos sejam obrigados a participar das decisões fundamentais: essencial é que possuam iguais oportunidades de participar, e que não sejam desestimulados de participar. Tampouco é necessária a participação de todos em todas as decisões, se quem decide foi previamente autorizado em decisão aberta a todos, e está sujeito ao controle por parte de todos. Muitos confundem o princípio democrático com a regra da maioria, mas esta é apenas um expediente para a tomada de decisões. Na democracia pode haver decisão tomada por um só, decisão tomada por alguns, decisão tomada por muitos e decisão tomada por todos. O importante é que seja aberta a todos a decisão sobre quais sejam esses casos. Chegamos assim à principal dificuldade, consistente no falseamento das formas democráticas por parte de quem possui grande influência, basicamente o poder econômico. Se o entendermos, à semelhança de outros poderes tais o poder ideológico, o poder das comunicações, o poder que advém da profissão, da instrução, da posse de um ?status? como algo inseparável da vida em sociedade, a solução parece consistir em limitar sua influência ao razoável. Alguém dirá que o poder econômico não se deixa limitar, e chegados a este ponto apresentam-se algumas questões relevantes que pomos entre parênteses (se a infra-estrutura econômica determina a superestrutura da sociedade; se há um modo socialista de produção; se é possível subordinar o capitalismo aos interesses da democracia; etc.). Voltamos portanto ao início do texto, à situação daquele homem que, desejando o melhor para si mesmo, para sua família e para a sociedade, quer participar ativamente da política. Foi para ele que escrevi este artigo, certo de que todos os caminhos dependem dele, de sua energia e de sua indestrutível esperança.

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Sérgio Sérvulo da Cunha é advogado em Santos, membro da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas, foi chefe de gabinete do ministro Márcio Thomaz Bastos, autor, dentre várias obras, do ?Dicionário Compacto do Direito?(Saraiva). E.mail:sergioservulo@uol.com.br