Quanto mais próximo do analfabetismo e da ignorância, mais o policial é tolerante com a corrupção e a violência dos colegas.

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Essa foi uma das conclusões a que chegou pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, entrevistando 23.540 policiais (civis e militares), de 3 de dezembro de 2008 a 18 de janeiro de 2009.

O que vale, frente aos colegas de trabalho, é o pacto do silêncio, a cumplicidade, a conivência. Um policial dificilmente “denuncia” um colega.

Quanto menor o nível de escolaridade, ou seja, quanto mais ignorante, maior a aceitação das transgressões dos colegas (O Estado de S. Paulo de 16/3/09, p. C1).

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Metade dos policiais brasileiros possui apenas o ensino médio (mais precisamente: 49,77%). Muitos não têm nem sequer o primário completo. Segundo os coordenadores da pesquisa, Marco Aurélio Ruediger e Vicente Riccio, educação é primordial também, como se vê, na questão da corrupção.

O que a pesquisa da FGV acaba de revelar – complacência dos policiais frente aos colegas – reforça a tese, já quase consolidada no Supremo Tribunal Federal, de que cabe ao Ministério Público investigar os deslizes e crimes dos policiais.

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Para o STF, já existiria previsão constitucional para isso. Essa foi a decisão unânime da 2.ª Turma da Suprema Corte, em julgamento realizado no dia 10 de março de 2009, na análise do Habeas Corpus 91.661, referente a uma ação penal instaurada a pedido do MP, na qual os réus são policiais acusados de imputar a outra pessoa uma contravenção ou crime mesmo sabendo que a acusação era falsa.

De acordo com a ministra Ellen Gracie, relatora do habeas corpus, é perfeitamente possível que o Ministério Público promova a coleta de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e materialidade de determinado delito. “Essa conclusão não significa retirar da polícia judiciária as atribuições previstas constitucionalmente”, afirmou Ellen Gracie, segundo o site do STF.

A possibilidade de o Ministério Público presidir investigação criminal sempre foi um tema bastante complexo e controvertido. A doutrina, assim como a jurisprudência, nunca chegou a um consenso.

Por detrás dessa extensa polêmica jurídica existe um secular conflito (institucional e intestinal) entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária – tendo como terceiro interessado e interveniente a advocacia.

O Ministério Público, de forma inquestionável, tem poderes para investigar os seus próprios membros. Aliás, essa regra é reconhecida e se aplica há tempos. O que se discute é o seu poder de investigação geral, ou seja, a sua atribuição para presidir a investigação de qualquer crime. É aqui que está o problema, visto que tanto a polícia como os advogados nunca aceitaram esse poder.

Há tempos o STJ admite tal possibilidade. Em recentíssima decisão, publicada no início de março de 2009 (2/3/2009 – HC 83020 / RS) a Corte reconheceu, mais uma vez, a legitimidade do órgão ministerial para presidir a fase de investigação preliminar.

De outro lado, ratificou o entendimento consagrado na sua Súmula 234 no sentido de que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”.

Já no STF, o tema nunca foi tranquilo. A jurisprudência mais antiga dessa Corte Suprema não reconhecia a possibilidade de membro do parquet presidir investigações gerais.

No Inquérito, 1968 o tema está sendo discutido e já se nota uma evidente tendência de alteração dessa antiga posição (três votos e dois, por ora, admitem o poder investigatório amplo do MP). O julgamento do HC 91.661 (2.ª Turma) veio ratificar essa tendência.

O artigo 144 da Constituição Federal, em sua atual redação, não atribuiu ao MP poderes de investigação criminal por conta própria. Essa tarefa compete prioritari,amente (ou exclusivamente, no caso da Polícia Federal) à Polícia Judiciária.

Mas dentre as funções do MP (Constituição Federal, artigo 129) encontra-se a possibilidade de requisitar documentos, ouvir pessoas etc. Se de um lado o controle externo que pode ser exercido pelo MP sobre a Polícia não chega ao extremo de permitir a presidência de uma investigação, de outro, é certo que o MP conta com amplos poderes de realizar diligências investigatórias (poderes esses dados tanto pela Constituição como pelas suas leis orgânicas). Pode o MP acompanhar o inquérito policial e, além disso, também pode requisitar documentos, ouvir pessoas etc.

O ordenamento jurídico, como se vê, não é muito claro a respeito do tema. É dúbio. E toda legislação dúbia, como se sabe, abre margem para diversas interpretações.

Estrategicamente, o STF colocou o assunto no limbo (já faz muito tempo). Diante dessa postura -política do avestruz, que mete a cabeça dentro da terra e esquece o mundo- continua o MP investigando muitos fatos.

Em apoio à tese favorável ao MP será invocada, num determinado momento, a teoria do fato consumado. Sobretudo quando se trata da investigação de policiais, é certo que nada mais adequado que essa atividade seja presidida pelo Ministério Público (que conta com autonomia suficiente para isso, evitando-se possível corporativismo quando dessa etapa da persecução penal cuida a própria polícia).

Caso o STF, pelo seu órgão Pleno, venha a ratificar o entendimento da 2.ª Turma, restam então definir (com toda segurança possível) os limites investigatórios do MP. Não contamos hoje, na lei, com regras claras sobre como ele concretizaria essa atividade persecutória.

Os advogados, os investigados e a população em geral têm o direito de conhecer previamente as regras do jogo (ou seja: as regras determinantes de todas as atividades investigatórias).

O Estado de Direito (com regras jurídicas claras) deve reger em toda sua amplitude essa atividade, que é invasiva e delimitativa de direitos fundamentais sumamente relevantes. A preocupação central, lógico, reside nos abusos.

Ninguém está autorizado, no Estado democrático de direito, a praticar excessos. O STF, caso conclua pela possibilidade de investigação geral pelo MP, deve tomar o cuidado de deixar claro quais regras serão seguidas por ele, em suas investigações próprias.

Recorde-se: todo órgão público que detém poder tende a extrapolá-lo (tende a abusos). Limites firmes são, portanto, absolutamente necessários. Ninguém está disposto, em pleno século XXI, a aceitar as regras da inquisição da Idade Média, nem as nefastas investigações do Estado de Polícia, nem as perseguições nazistas. Equilíbrio, razoabilidade e proporcionalidade: é disso que vive o sensato Estado de Direito.

Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito Penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).