Polícia? Pára… Quem precisa de polícia?

Nos últimos tempos, os graves, sucessivos e trágicos acontecimentos violentos colonizaram o noticiário brasileiro, em face, principalmente, da vitimização de pessoas ilustres, ligadas, invariavelmente, a segmentos importantes da sociedade.

Destas pessoas, vítimas da fúria da deviance, sobressaem os empresários, os políticos e – agora como novo alvo deste seleto grupo – os jornalistas. Daí, talvez, a justificativa ou a explicação, do foco centrado da imprensa neste nível de saturação pela exposição excessiva.

Alia-se também a isto o fato de que a principal característica destes dignitários mencionados ser a multiplicação e a formação da opinio publica corrente. A morte do jornalista Tim Lopes trouxe às claras que o Estado Paralelo se impõe com a tática universalmente conhecida: sangue, terror e mordaça. Estratagema este já apontado por Jean Ziegler quando disse ao mundo sobre as novas máfias contra a democracia em seu “Os Senhores do Crime”.

Lembra-se que essa mesma opinião pública, no que se refere a segurança, encontrava-se abalada desde tempos atrás, chegando mesmo a influenciar decisivamente nas propostas dos candidatos aos pleitos eleitorais das eleições passadas. Tanto que tais medidas de segurança – em estado de urgência – guindou alguns destes candidatos aos cargos pretendidos baseados, como se disse, na projeção da eficiência dos mecanismos da Segurança Pública.

Isto demonstra claramente as faces do medo da população que se vê encurralada quer seja pelo desemprego – em virtude da violência tecnológica que lhes retira a força de trabalho, vide as reengenharias, reestruturações e otimizações que permeiam o discurso dos administradores – quer seja pela violência que agride sua integridade patrimonial ou pessoal.

A sensação de insegurança, traduzida em medo-pânico, aparece mais ainda que noutros tempos; justamente porque havia menos predisposição da mídia em mostrar o chão sujo da realidade dos organismos da first-line enforcer: não havia interesse da mass media frente aos casos violentos. Resultado dessa obsessiva vitrificação da realidade, casos e casos policiais tornam-se alvos do interesse da imprensa; julgamentos e condenações, transmitidos ao vivo ou, até mesmo, ações criminosas em tempo real. Fala-se em TV Judiciário! Estar-se-ia a Civilização Moderna às portas da Justiça Teatral? O que então era uma exceção tímida, fútil, passou a ser a regra. A explicação, obviamente, é mercadológica: além de construir o mercado cativo é preciso também domesticá-lo.

Os discursos provocam acalorados confrontos de idéias em torno do tema Segurança Pública. Agora se tem consciência de que, em se tratando desta matéria e para se lidar com os problemas gerados pelo crime (fatos) e pelos criminosos (pessoas) – principalmente o organizado (grupos) – é preciso entender do que se convencionou chamar compactadamente dessas forças de segurança ou, simplesmente de polícia, a ultima extrema ratio do Estado, numa forçada síntese hobbesiana.

Necessário que se diga que estas pessoas ligadas ao comando dos aparelhos formais de controle ou de repressão da violência devem entender também com densidade e profundidade os mecanismos de funcionamento destes aparelhos de segurança, sejam elas as de natureza pública, sejam elas de natureza privada. Sendo esta última motivo de consideráveis preocupações por parte daquelas pessoas já familiarizadas com sua problemática e que se comentará logo adiante.

Ainda que as questões relacionadas à Segurança Pública possam parecer tão óbvias, tão evidentes, não é isto que se obtém da prática, justamente pelo fato de que apresentam contornos que demonstram um outro lado, até então desconhecido: o da complexidade.

Simples sugestões – apresentadas como salvadoras – emitidas por não profissionais, são, no mínimo, levianas, inconsistentes e, não rara às vezes, desestimulam todo o aparato, que, por isso mesmo, se vê sem direção e à deriva.

Não é tarefa fácil pôr em prática idéias que impliquem em movimentar a força policial. Muito embora existam policiais absolutamente vocacionados à tarefa de combate ao crime, dedicando-se de corpo e alma, muitas vezes dispendendo do seu próprio bolso para freqüentar cursos ou descobrir algo que seja do interesse da instituição policial, necessário dizer que ele vive no mundo de Remo e não na República de Platão.

É que a crise que atinge o setor público, que ganha aplausos dos cidadãos que acatam passiva e decididamente o discurso da law and order – ainda que este comportamento eficiente comprima (ou suprima muitas vezes, vide os casos em que são concedidas buscas domiciliárias em quarteirões inteiros, abrangendo mais de 100 residências, mediante um só mandado) direitos e garantias fundamentais desta mesma massa de pessoas – mas, tudo em nome de uma resposta instantânea do aparelho estatal, ao melhor estilo curto-agudo-chocante (short-sharp-shock).

Como tais respostas dos aparelhos formais são possuidoras deste conteúdo impactante, realizam-se esporadicamente. Mas a população não quer respostas que suavizam a sensação de violência ou que leve, pelo menos, a mídia a comentá-las – o que pela linha indireta também representa notícia, que é, a priori, seu maior objeto de desejos.

Neste contexto, as ações dos aparelhos formais de segurança ou até de Justiça (sua última resposta), ganham ou entram na dimensão efêmera e volátil que Jean-François Lyotard bem chamou de pós-moderna. Seria inútil continuar a agir assim!

Diante da perplexidade do cidadão (abastado ou não) que se vê à deriva, opta (ele) por romper com o Contrato Social e ceder ao que o mercado propõe: feudalização da sua propriedade (muros altos, cercas elétricas, cachorros ferozes e sem cordas vocais), securitização de grande parte dos bens – em que pese o valor da franquia que fatalmente lhe será cobrada em eventual sinistro -, seguranças eletrônicas, filmadoras…

Assim, a expansão do mercado do medo se sobrepõe. Diga-se que no Brasil, as empresas voltadas a prestar segurança privada às pessoas (jurídicas ou físicas) atingem proporções gigantescas, tornando-se uma prestação de serviços, incluída nas despesas domésticas, assim como a água, a luz, o telefone, a internet, dentre outras.

Necessário que se ponha o outro lado desta vertiginosa atividade voltada à Segurança Privada. É que aumentando esse contingente de pessoas voltadas a atividade de segurança paralela/privada – que, como se disse, cresce em proporções geométricas – cresce a preocupação de como proceder com as pessoas que, estando nesta atividade, tornam-se desempregadas.

O alerta ganha outros contornos ao se afirmar que estas pessoas, agora desempregadas, têm os conhecimentos de táticas policiais, dos mecanismos de informação e contra-informação e manuseio de armas de fogo.

A preocupação que se tem em relação ao assunto é a possibilidade do descontrole completo destas empresas ou, ao menos, de alguns dos seus componentes. Já que não existem, ainda que ínfimos, mecanismos de controle visando coibir eventuais desvios dentro de tais organizações.

Aliás, nem se sabe, efetivamente, se há interesse destas empresas em investir no controle correicional, uma vez que elas próprias (as organizações), ao descobrirem desvios, dentro da lógica capitalista, só têm a perder em virtude de uma acidental divulgação.

Outra indagação que poder-se-ia colocar à mesa (não menos importante) é a dignidade acadêmica dos assuntos referentes aos trabalhos policiais.

A polícia, enquanto atividade científica, tem sido ridicularizada nas faculdades – principalmente as de Direito – que retiraram dos seus curriculuns disciplinas como criminologia e medicina legal, verdadeiros fundamentos dessa atividade.

Sem qualquer conotacão classista, mas o assunto deve ser tratado com toda a dignidade científica, justamente porque já se começa a sentir uma abissal deficiência de profissionais qualificados para manusear o assunto (o que já se disse anteriormente). Em outros tempos, juristas exerceram funções muito próximas das atividades desenvolvidas pela forças policiais. Cita-se Roberto Lyra que fora professor em Escolas de Polícia na década de 50 e também, a interessante tragetória do ministro Nelson Hungria, que chegou a ser delegado de polícia na década de 20.

É inegável a contribuição de ambos para a construção do pensamento jurídico-criminal brasileiro, embora se trate de posições divergentes, passíveis de duras críticas, ambos se aproxiamaram – tanto no plano teórico quanto prático – da fria realidade dos organismos policiais, sem pré-conceitos.

Veja que em importantes países desenvolvidos, principalmente os integrantes do Grupo dos Sete, este tema goza de prioridade nas academias, dignidade científica e prestígio institucional.

É inconcebível que as Universidades brasileiras (grande parte, pelo menos) portem-se dessa maneira! Não que se tenha que criar, como se fez o Estado do Piauí, uma Faculdade de Segurança Pública – provavelmente a primeira do Brasil. Mas que se dê uma atenção especial, fomentando as discussões acerca da temática.

Importante fazer menção que, embora quase inexistam “vozes” emancipadas que indiquem caminhos alternativos referentes a atividade policial – não apenas concebidas em restrito âmbito de política criminal, mas apresentando conteúdo de Processo Penal – as poucas que ainda restam são de qualidade. Lembra-se, para exemplificar, as recentes obras e incessantes trabalhos de Fauzi Hassan Choukr, Aury Lopes Jr, Geraldo Prado, Jacinto Coutinho e Juarez Cirino dos Santos.

Não que outras cadeiras sejam menos importantes, mas que se relegou ou sonegou – para usar com força a palavra – informações básicas e relevantes sobre a atividade desenvolvida pelo corpo policial, na fase mais delicada do Justiça.

Com essa ausência, desqualifica-se o profissional do Direito, que não sai devidamente informado e preparado para enfrentar a tensão dialética mais saliente da Democracia, ou seja, o eterno conflito entre as garantias fundamentais e o acesso à segurança. Um fundamento tão importante quanto o outro, sendo vital a necessidade de coexistência, embora tensa, de ambos no mesmo sistema.

As críticas cegas que têm sido repetidas nos bancos das faculdades de Direito, num continuum ensurdecedor, quando da formação dos jovens, mutilam qualquer incursão por sobre os pontos fundamentais da política criminal ou de segurança pública.

Esse posicionamento imperial e proselitista, quando dito de forma a obstruir qualquer visão diferenciada ou mais apurada referentes aos atos ou fatos de polícia, são, para dizer o mínimo, inconseqüentes e dotados de uma sagaz política institucional.

Curiosamente, apenas para lembrar, tem sido proferido nos veículos de comunicação brasileiros, por alguns membros do Ministério Público, que há tendencialmente uma formação de massa jurídica sectária que segue, ipsis literis, a cartilha entabulada com antecedência, pelos membros do parquet.

Admitir um discurso como esse, é, para referenciar Faria Costa, “policiarizar o processo” e, via de conseqüência, substituir a figura existente (aqui no Brasil) do delegado de polícia, por um Promotor de Justiça, lotado em esquadra policial, guarnecendo os “rejeitos” da sociedade pós-industrial, a que Sykes chamou de sociedade dos cativos.

Esse tipo de posicionamento, que aflora a todo instante, é causa de irritabilidade ao sistema Democrático e nada contribui para a construção da cidadania. Justamente por isso Canotilho bem emprega, na seqüência e em ordem de valores, a expressão “Estado de Direito Democrático”, fazendo sempre estar presente que embora de Direito seja o Estado, este possa adotar uma postura autoritária.

Não se deve abordar, como diz Hassemer “uma política policial”, trata-se, com certeza, embora fragmentária, de uma parcela importante do todo que compõe a política criminal e por isso mesmo necessário o seu estudo e o conhecimento mais aprofundado possível de suas principais dificuldades.

Essa atitude de negação ou rejeição em relação aos assuntos policiais decorre, em verdade, do passado histórico vivido nos regimes autoritários, que o “Brasil Nunca Mais” deve esquecer. Também parte do legado se dá em face do fenômeno da corrupção, de forma visível, nas polícias.

Mas tal comportamento não ocorre isoladamente e somente nas repartições policiais. Outras instituições estão sendo colocadas à prova e as reportagens do jornalismo investigativo demonstram a outra face, até então oculta, da neutralização do comportamento daqueles que devem ou deveriam agir em nome da Democracia.

Advogados, Membros da Magistratura, Ministério Público, Políticos, Empresários, Médicos, Fiscais, dentre tantos outros, irrompem do sistema a que pertencem imbuídos por uma bulimia financeira cara, elitizada e sem limites. Então, neste jogo sujo, a polícia não está só! O problema está na visibilidade ou não daqueles de fraturam o esquema idealizado pela Democracia e no quantum necessário para que seu comportamento estatutário seja neutralizado.

É certo que a polícia coonestou como o braço fiel do autoritarismo. Ela foi partícipe da repressão e do crime institucional. O débito ainda é muito grande e as intituições de segurança têm e devem pagar o preço deste passado sombrio.

Que o passado histórico sirva de exemplo e sua lembrança seja sempre vivificada, contrariando a máxima de que o “País não tem memória”; mas, decisivamente, não seja o assunto policial carimbado – ao melhor estilo labeling approach – e estigmatizado a ponto de não discuti-lo nas academias.

Aliás é exatamente esse braço teórico que faz falta ao universo das forças públicas de segurança, a fim de que se evite a reedição infindável dos impropérios ditos em nome das Polícias.

Dentro da perspectiva filosófica incluída no movimento do realismo jurídico dos anos 30, referenciado com vigor por Tove Stang Dahl, autoriza-se a dizer que, em se tratando de Segurança Pública no Brasil falta à prática (law in action) um bom tempero de teoria (law in books). Talvez seja esta contribuição sediciosa que falte, por parte das academias, ao universo das polícias no Brasil.

Se se dignificá-lo ao ponto de incluí-lo nas discussões científicas, com abordagens inovadoras, produzidas nos laboratórios da razão pura, quem sabe não seria esquecido o insistente convite ao abolicionismo policial feito pelos Titãs, enfaticamente no tom: “Polícia! Pára… Quem precisa de Polícia?”.

Sérgio Inácio Sirino

é delegado de polícia de carreira no Estado do Paraná, pós-graduado em Direito pela UFPR e mestrando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail:
sirino@fd.uc.pt

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