Poesia infantil, amanheceres, desnomes e invenção

A literatura começou em verso e ritmo. As primeiras manifestações intencionalmente artísticas foram, ao mesmo tempo, religiosas. Os cantos e orações dedicados aos deuses se apresentaram em forma de poemas.

Octavio Paz, um importante poeta-crítico da América Espanhola afirmou, no livro Signos em rotação, que o ritmo é o elemento mais antigo e, talvez, anterior à própria fala. Diz mais: "Sem ritmo, não há poema". Completa: "Deixar o pensamento em liberdade, divagar, é regressar ao ritmo; as razões se transformam em correspondências, os silogismos em analogias e a marcha intelectual em fluir de imagens".

Essa introdução abre para reflexões multidirecionadas. Vozes ecoam na memória, em falas desencontradas sobre a importância da poesia, da quase inexistência dela na escola, nas dificuldades docentes no trabalho com os textos poéticos. E, no entanto, a infância é o período em que o pensamento mais divaga, em liberdade, em imagens e ritmos!

Como entender esse aparente paradoxo: o professor reconhecendo a importância e desejando mobiliar a sala de aula com a magia da poesia, a alegação generalizada sobre a dificuldade de entendimento e a propensão natural dos leitores mirins para esse gênero literário?

Arriscarei uma reflexão a partir de três perspectivas: o conceito de poesia no trabalho docente, a visão pragmática da escola e o acervo de poemas a circular nos espaços escolares.

A primeira delas diz respeito à formação teórico-crítica do professor. Se ele parte do pressuposto que textos literários devem ser entendidos racionalmente e utilizados em sua pretensa mensagem para finalidades de aprendizagem de conteúdos, de expressão lingüística ou de paralelismo com a vida pessoal, nada entendeu de estética, de literatura-arte e, conseqüentemente, de poesia. A arte poética remete a interioridades, a sensações, a melodias ouvidas/perdidas em tempos imemoriais e recuperadas no instante mesmo da leitura. Cantigas, parlendas, jogos verbais formam a base de textos que enraizaram a vivência com a poesia. Ler poemas de Ou isso ou aquilo, de Cecília Meireles, ou os poemas de José Paulo Paes, são experiências com sons e ritmos do passado infantil, recuperados em intrigantes e belos textos líricos.

Na segunda hipótese de resposta, considero a visão pragmática que a instituição escolar instituiu para o trabalho do professor, para a elaboração de livros didáticos e para a interpretação de textos. Em um dos capítulos de Através do espelho e o que Alice encontrou lá, de Lewis Carroll, Alice encontra com Humpty Dumpty, personagem cuja função na história é personificar o contraditório, que, contrariando a expectativa utilitária da menina, propõe recitar um poema que "foi escrito apenas para deleitá-la". Esta atitude raras vezes é vivenciada na escola. Deleite não combina com aprendizagem e/ou avaliação. De leite só entra na sala de aula para compor receita de bolo ou de vitamina! Igual procedimento adotam os livros didáticos, com exercícios de interpretação, baseada em perguntas sobre o óbvio, a respeito dos poemas reproduzidos, ou aplicações gramaticais, em atividades áridas e formalistas.

É, porém, sobre o acervo poético que estendo mais meu comentário. Vera Aguiar Teixeira, escritora e pesquisadora da PUCRS organizou dois volumes, intitulados Poesia fora da estante, contendo poemas criados por escritores nem sempre rotulados como infantis (Oswald de Andrade, Paulo Leminski, entre outros), mas que demonstram adequação à capacidade de reconhecimento de letras e estruturas formais pela criança e alta qualidade estética. Demonstrou que é possível tratar com respeito e sem maternalismo o leitor, desafiando, propondo, deleitando. Sem infantilismo, doença escolarmente transmissível.

De leite, ambrosia e hidromel, manjar de deuses, são os livros de Manoel de Barros, poeta do Pantanal mato-grossense, recentemente produzindo textos para crianças de mentes abertas para a beleza. Em Exercícios de ser criança, o poeta trata do imaginário infantil desdobrando-se na descoberta da escrita como construção de mundos, revelando a capacidade de transformar realidades em outras reais -atividade de poeta, concretização de impossíveis, de "despropósitos". Destino escolhido e bordado pelas palavras, evocadoras de beleza, e expresso pela mãe do menino: "Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda". A ilustração do volume, feita por bordadeiras, é o complemento ideal da poesia das palavras: maravilhamento página a página.

O que dizer do conjunto de poemas de O fazedor de amanhecer? Eles colocam o mundo e o entendimento que supomos ter dele de cabeça para baixo. O tom de todos os textos é a invenção: "Quem não tem/ ferramentas de pensar/ inventa". O leitor desliza em descobertas de situações, paisagens, animais e sentimentos, manifestos pelo poeta "fazedor de amanhecer", capaz de descrever em palavras a realidade escondida no mínimo, no andarilho, no que não tem préstimos concretos, no silêncio.

Em Poeminhas pescados numa fala de João, Manoel de Barros desinventa a língua. Em sua poesia importa muito mais a força da imagem, o ritmo do verso, a beleza do inter-dito, a espessura da descoberta do mundo. A poesia transcende a gramática para se transformar em beleza: "Escuto o meu rio:/ é uma cobra/ de água andando/ por dentro de meu olho…" Ao final do livro, com magnífica ilustração de Ana Raquel, o poeta escreve uma "Desexplicação", em que afirma "Língua de criança é a imagem/ da língua primitiva/ Na criança fala o índio, a árvore, o vento/ Os nomes são desnomes/".

Voltamos com ele ao ritmo anterior à fala, à história antes da fala historicizada, ao tempo do antes, com poemas que recuperam a música dedicada aos deuses da poesia.

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