Poder investigatório do Ministério Público

Tem ou não legitimidade o órgão do Ministério Público para conduzir investigações criminais?

A questão, levada a julgamento há quase um ano perante o Supremo Tribunal Federal encontra-se ainda sem resposta, em virtude de um pedido de vista do Ministro Cezar Peluzo, formulado na sessão de julgamento em 01 de setembro de 2004 e renovado em 15 de outubro do mesmo ano.

Várias e severas críticas foram tecidas por determinadas categorias profissionais, a exemplo da ADEPOL Associação dos Delegados de Polícia do Brasil , que rebate a pretensão da instituição ministerial sob dois argumentos principais: primeiro, por haver clara afronta ao princípio constitucional da Separação dos Poderes e, segundo, em virtude de a Carta Magna determinar, em seu artigo 144, § 1.º, IV, o exercício da função de polícia judiciária, com exclusividade, pela Polícia Federal da União.

Do mesmo modo, ainda, representantes das classes de Advogados e da Magistratura entendem pela impossibilidade de investigações criminais serem conduzidas pelo Ministério Público, haja vista atuar na ação penal pública como parte, porque, em função disto, estabelecer-se-ia uma perigosa desigualdade em face do indiciado, que não possui as mesmas possibilidades/oportunidades de produzir provas em seu favor.

No entanto, uma análise pormenorizada dos três pontos levantados parecem afastar qualquer óbice ao poder de investigação do Ministério Público.

Os Poderes instituídos, como o foram no art. 2.º da Constituição Federal de 1988 (1), consagrando a tripartição de Montesquieu, são uma reafirmação do Estado Democrático de Direito estabelecido no art. 1.º cuja defesa integra uma das funções institucionais do Ministério Público, segundo se observa no caput do artigo 127, também da Carta da República. Esse, o primeiro motivo pelo qual não há ofensa ou, mesmo, ameaça ao princípio apontado. O segundo, porque o Ministério Público não é Poder(2), embora haja alguns doutrinadores que defendam a tese.

Quanto à competência das Polícias, previstas no artigo 144 da Constituição Federal que trata da segurança pública deve-se ter uma certa cautela na sua exegese. Não obstante o dispositivo determine, em seu § 1.º, IV, que à Polícia Federal compete exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União, tal ressalva não se verifica no § 4.º, quanto às polícias civis, em âmbito estadual. Inclusive, o que se verifica neste último é, justamente, a disposição de duas atividades distintas e bem definidas: "funções de polícia judiciária" e "apuração de infrações penais".

Com muito acerto, Paulo G. G. Fontes explica: "Tal compreensão tem reflexos evidentes para o tema em apreço, uma vez que a exclusividade foi mencionada apenas no inciso IV, relativo às funções de polícia judiciária e não no inciso I, que trata da apuração de infrações penais. Do ponto de vista hermenêutico, em face da clara distinção adotada pela Constituição, enfatizada por duas vezes, não se admite embutir a apuração das infrações na função de polícia judiciária, como usualmente se faz, com a conseqüência de lhe estender a cláusula de exclusividade"(3).

Deste modo, mostra-se inaceitável que um político, uma vez denunciado por mal uso da máquina estatal, qualquer que seja, alegue em seu favor nulidade da prova quanto à conduta ilícita praticada porque obtida pelo Ministério Público, quando deveria ter sido pela polícia. Conforme dito acima, não há determinação no artigo 144, § 4.º da Constituição Federal de que apenas à polícia incumbe a investigação criminal. Inexiste exclusividade na atividade investigatória, a exemplo das Comissões Parlamentares de Inquérito, previstas no artigo 58, § 3.º da Carta da República. Essa é, inclusive, a situação vista nos principais meios de comunicação nos últimos dois meses, que relatam a grande crise política pela qual atravessa o país.

Um outro argumento merece atenção: as autoridades policiais estão subordinadas ao Poder Executivo e, por isso mesmo, podem protelar, encobrir ou alterar fatos e provas quando o investigado for integrante do governo, retirando do órgão ministerial a possibilidade de esclarecimento e a condição de processar e punir o agente.

Sobre esse ponto, especificamente, Paulo Rangel, citando Hugo Nigro Mazzilli, destaca que a condução de investigações pelo Ministério Público não é cabível apenas quando se tratar de "crimes cometidos pelos administrados, mas sim, também, pelos administradores, integrantes do governo"(4), haja vista a superioridade hierárquica destes em relação às autoridades policiais.

Seria ideal, sem sombra de dúvida, que à polícia fosse outorgado o livre exercício de suas funções, sem vinculação ao Poder Executivo como ocorre hoje, com investimentos consistentes, não apenas em seus agentes, mas também, em meios/equipamentos capazes de fornecer provas mais seguras.

Todavia, tendo em vista ser esta uma realidade inimaginável, ao menos até o presente momento, há que se atentar para as reais condições de execução do ofício e delegá-los a quem tem possibilidade de torná-lo mais efetivo. E o Ministério Público é o órgão dotado de capacitação técnica para tal atribuição.

Quanto ao fato de o Ministério Público integrar o pólo ativo da ação, isto é, ser parte e ter poder investigatório, essa não seria uma novidade no ordenamento jurídico, haja vista isto já ocorrer na esfera cível, conforme se verifica no artigo 129, inciso III da Constituição Federal, cujo teor prevê ser função institucional do Ministério Público, "promover o inquérito civil […]".

Até porque, se à instituição, por meio de seus representantes, compete "promover privativamente, a ação penal pública, […]", segundo dispõe o inciso I do já falado art. 129, devem-lhe ser dadas as condições necessárias para exercer esse seu mister: o poder de coletar provas.

Por tudo o que foi exposto até agora, parece não consistir desrespeito aos valores constitucionais e, portanto, uma antinomia jurídica permitir ao órgão do Ministério Público a condução de investigações criminais.

Notas

(1) Constituição da República Federativa do Brasil. 33. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004.

(2) Alfredo Valladão, co menta que "Se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das Leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla, a divisão de poderes. Ao órgão que legisla, ao que executa, ao que julga, um outro acrescentaria ele: o que defende a sociedade e a lei – perante a Justiça, parta a ofensa de onde partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado". VALLADÃO, Alfredo. Op. cit., In: MARQUES, J. B. de Azevedo. Direito e Democracia – O Papel do Ministério Público. São Paulo: Cortez, 1984. p.10-11.

(3) FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Investigação pelo MP: exegese do art. 144. Disponível em http://www.prse.mpf.gov.br/artigos/art?144?cf?2.pdf.

(4) RANGEL, Paulo. Investigação criminal direta pelo ministério público: visão crítica. 2. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2005, p. 211

Mônica Ferreira Corrêa da Silva é assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

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