Dia terrível aquele. Entre Anás e Caifás, o vice-presidente José Alencar sentiu-se Pilatos. Só não lavou as mãos. Aliás, tentou lavá-las simbolicamente diversas vezes, mas poucos perceberam. Leu e releu o texto. Ouviu prós e contras e voltou a ouvir os que se entrincheiravam dos dois lados. Uma luta quase campal. Pediu tempo para pensar, coçou a cabeça, trocou nomes, tropeçou nas justificativas, escancarou uma das fragilidades desse governo que aí está, atropelado duas vezes pelo mesmo problema em menos de nove meses. Ia assinar a medida provisória liberando o plantio de soja transgênica, mas não queria ver sua própria assinatura sobre aquele papel: “Um pobre coitado de um presidente em exercício, lá de Minas Gerais, tem que assinar essa medida”…

Não é pobre. Não é coitado. É de Minas Gerais e é vice-presidente da República Federativa do Brasil no exercício quase simbólico da Presidência. Onde queria chegar o rico empresário com jeito simplório que, em outras oportunidades, atacou com coragem e denodo os juros altos de nossa criminosa usura? A decisão, ninguém duvida, já estava tomada. O resto era jogo de cena. Mas Alencar precisava esticar tanto, mostrar tanta indecisão, mesmo depois de gastar uma nota de telefone internacional falando com o presidente Lula, distante oito, nove mil quilômetros?

Foi um dia muito interessante. E, hilariedades à parte, serviu para provar outra vez que o governo tem, dentro de suas próprias entranhas, todos os prós e todos os contras de qualquer problema. Fosse isso, talvez, o que o vice “pobre coitado” quisesse evidenciar. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, chegou a se irritar com a demora (afinal, não fora isso assim combinado) que deu oportunidade a seu colega Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, iniciar pressão explícita, à frente de trinta deputados, contra a assinatura do documento liberatório (defendida ao mesmo tempo por outro gaúcho e igualmente ministro, Tarso Genro). Afinal, liberar o comércio da soja colhida é uma coisa; liberar o plantio para deixar livre outra colheita (e outra comercialização conseqüente), é outra. Um entrechoque de posições muito conhecido de Lula que, matreiro, repetia aos jornalistas nos Estados Unidos mais ou menos o que ocorria com os soldados eventualmente presos durante a segunda grande guerra: Eles sabem o que fazer, não posso comentar; minha opinião eu a dou quando chegar ao Brasil… Um presidente sem opinião, um vice sem orientação? Quem acredita?

No outro lado da rua, em Brasília, agentes do Poder Judiciário estavam prontos para outro ataque. Uma decisão transitada em julgado simplesmente passa ao largo do debate produzido no seio do Executivo e condena às sombras do fogo eterno qualquer pé de soja transgênico. E há quem tenha assegurado usar tal decisão para – vejam o absurdo! – iniciar processo de impeachment contra o presidente Lula. Alencar (ele acredita nisso?) sentiu-se cobaia, mais que os protestantes contra a transgenia em qualquer grau ou nível.

Graças a isso, agora o problema está posto em toda a sua plenitude. E diante do tamanho do debate seria ridículo se prevalecesse uma decisão singular de um juiz também singular, cheio de saber jurídico, mas desprovido de conhecimento científico adequado. Os técnicos da Embrapa, por exemplo, garantiram ao vice “pobre e coitado” que a soja transgênica não oferece mal algum à saúde. Pelo contrário, ajuda o bolso de quem planta e a balança de pagamentos de nossa dívida impagável. Lá fora, cientistas desapaixonados, como os da principal academia de ciências da Inglaterra, garantem o mesmo. Viva a soja, viva a transgenia! Abaixo o obscurantismo científico…

Ora, seria melhor encaminhar o tema em momentos de paz. Isto é, fora do plantio e da colheita. A decisão será mais sábia e menos traumática. Para ricos e pobres.

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