No dia 1/09/10, por seis votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu penas substitutivas para o tráfico de drogas.

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Julgou inconstitucionais partes dos arts. 33, § 4.º e 44 da Nova Lei de Drogas (Lei 11.343/06), que proíbem expressamente a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos (também conhecida como pena alternativa) para condenados por tráfico de drogas.

Aos juízes, em cada caso, compete a tarefa de aplicar ou não tais penas. A decisão foi tomada no Habeas Corpus 97.256 (STF, HC 97256) e, portanto, vale somente para o processo julgado.

Mas o mesmo entendimento poderá ser aplicado a outros processos que cheguem à Corte sobre a mesma matéria. O que devemos extrair dessa decisão do STF é o seguinte: o Poder Político (Legislativo + Executivo), navegando uma vez mais pela onda do populismo penal (que defende como bandeira o rigor penal para a “solução” dos problemas graves do país), cometeu excesso (como bem sublinhou o Min. Celso de Mello).

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Foi além do que podia quando proibiu penas substitutivas (alternativas) para “todos” os delitos de tráfico de drogas. O poder de “fabricar leis” é limitado. O legislador ordinário já não pode escrever (nas leis) tudo que lhe vem à cabeça.

No tempo do legalismo (primeiro paradigma do direito moderno, que surgiu no século XIX para a proteção da burguesia ascendente) o poder político (legislador e poder executivo) podia tudo.

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Os juízes, eunucos que eram (alguns ainda assim se comportam, em pleno século XXI), nada faziam contra as leis. Eram servos da lei. Confundia-se a lei com o direito.

Na era da pós-modernidade vigoram (também) outros paradigmas do direito: o constitucionalista, o internacionalista e o universalista. Agora, nem tudo que o legislador escreve vale. Seu texto (já) não é bíblico.

A lei aprovada pelo poder político se torna vigente, mas não vale (é fundamental distinguir a vigência da validade da lei, conforme Ferrajoli). Todas as eventuais barbaridades (inconstitucionalidades e inconvencionalidades) escritas pelos legisladores são, agora, glosadas (cortadas) pelos juízes.

O legislador constituinte de 1988 evoluiu muito em termos de proteção dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Mas no art. 5.º, inc. XLIII, plantou um “ovo de serpente”, permitindo tratamento “duro” para os crimes hediondos e equiparados.

De qualquer maneira, traçou concomitantemente os limites desse “ovo”. Tais crimes não admitem fiança, graça ou anistia. Só! Mais que isso nada pode ser proibido genericamente (como disse o Min. Ayres Britto).

A regra é a liberdade. A prisão é exceção. Ao proibir penas substitutivas para o tráfico de drogas a lei foi além do que podia. Criou-se uma serpente mais venenosa que o próprio ovo. Não pode. E não pode por quê?

Porque o legislador ordinário tem que respeitar o princípio constitucional da individualização da pena, que é tarefa do juiz, levando em conta todas as peculiaridades do fato e do agente concretos.

O legislador não pode, com seus critérios abstratos e populistas, querer substituir o juiz. A César o que é de César. O STF, por sua lúcida e ilustrada maioria (ilustrada porque se afasta do obscurantismo medieval), não vem se mostrando conivente com a demagogia, tão inerente à democracia de massas (Weber).

O legislador da Lei 11.343/2006 agiu com muita lucidez ao distinguir, no art. 33, os vários tipos de traficantes (PMG: pequeno, médio e grande). Mas na hora de estabelecer o regime sancionatório para eles se perdeu na irracionalidade e na irrazoabilidade.

Tratou todos igualmente (e rigorosamente). Violou o princípio da igualdade, porque os desiguais devem ser tratados desigualmente (Rui Barbosa). O duro e, às vezes, hediondo tratamento conferido ao grande traficante não pode ser idêntico para o pequeno traficante (menores, mulheres ou gente primária e de bons antecedentes).

A cada um o que é seu. Cada crime deve ser punido na medida da sua gravidade (já dizia Beccaria, em 1764). Isso se chama proporcionalidade. Lições tão elementares do direito ainda não são assimiladas por grande parte da opinião p&uac,ute;blica (que sempre se ilude com a promessa de mais “rigor penal”).

Tampouco pela mídia populista que, aproveitando-se do medo da população (que anda bastante intranquila diante dos altos níveis de insegurança pública), não perde uma só ocasião para gerar mais medo, mais intranquilidade, mais insegurança, mais irresignação.

“Milhares de traficantes serão soltos” (foram essas as manchetes escandalosas)! Importante contribuição para o baixo índice de credibilidade do STF e mais pressão em cima dos juízes de primeiro grau. Mas é disso que vive a pouco científica mídia populista.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br.