Desde que a Lei n.º 9.714/98 alterou as regras para concessão da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, temos defendido a tese de que não há impedimento legal para que tal benesse seja aplicada também aos delitos de tráfico de entorpecentes, quando a pena corporal não ultrapassar a quatro anos de reclusão.
O principal fundamento em apoio ao nosso posicionamento centra-se no fato de que a nova redação do artigo 44 do Código Penal veda apenas a aplicação deste benefício aos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, ser o acusado reincidente em crime doloso, serem desfavoráveis os referenciais do artigo 59 do Código Penal, que trata da fixação da pena-base.
Por isso advogamos que nos casos em que a pena-base para o delito de tráfico seja fixada no mínimo legal, resulta em reconhecimento de que são favoráveis ao condenado as circunstâncias judiciais do citado artigo, e não sendo o acusado reincidente, tem direito à substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, haja vista que nesta modalidade de delito não está presente a violência ou grave ameaça à pessoa, e em termos de interpretação de lei ela deve ser sempre em favor do réu.(1)
Quando a nova lei de tóxicos entrou em vigor (n.º 10.409/02), novamente nos posicionamos no sentido da possibilidade de aplicação desta substituição de pena, agora adicionando aos argumentos antes postos, também o fato de que dita norma não proibiu tal incidência, e sendo norma específica e mais nova, implicitamente derrogou a vedação contida na hedionda Lei de Crimes Hediondos (n.º 8.072/90).(2)
Conforme apontamos em nosso livro, a nossa jurisprudência teve uma tímida inclinação para aceitar esta tese, vindo posteriormente a rechaçar de forma maciça tal substituição, o que perdurou por diversos anos, admitindo apenas a sua incidência para os delitos capitulados nos artigos 13 e 14 da Lei n.º 6.368/76.
Agora, é com satisfação que vemos nossos Tribunais Superiores reverem seus posicionamentos, passando a admitir a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, também para os delitos de tráfico.
O Supremo em recente julgado decidiu segundo o nosso entendimento. Verbis: ?Condenação. Tráfico de entorpecente. Crime hediondo. Pena privativa de liberdade. Substituição por restritiva de direitos. Admissibilidade. Previsão legal de cumprimento em regime integralmente fechado. Irrelevância. Distinção entre aplicação e cumprimento de pena. HC deferido para restabelecimento da sentença de primeiro grau. Interpretação dos arts. 12 e 44 do CP, e das Leis nos 6.368/76, 8.072/90 e 9.714/98. Precedentes. A previsão legal de regime integralmente fechado, em caso de crime hediondo, para cumprimento de pena privativa de liberdade, não impede seja esta substituída por restritiva de direitos.? (Rel. Min. Cesar Peluso, HC n.º 84.928-MG, j. em 27.09.2005).
No Boletim Informativo daquele Areópago esta matéria restou assim noticiada: Verbis: A Turma deferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que, aplicando o princípio da especialidade, mantivera decisão que determinara o condenado pela prática do crime de tráfico de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12) o cumprimento da pena em regime integralmente fechado. No caso concreto, o juiz, considerando presentes os requisitos do art. 44 do CP, procedera à substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, sendo esta decisão modificada pelo tribunal de origem e confirmada pela Corte a quo, ao fundamento de ser incabível a aludida substituição de pena ? trazida ao CP pela Lei 9.714/98 ? aos delitos elencados ou equiparados a hediondo, haja vista a vedação de progressão do § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/90. Entendeu-se não haver óbice à aplicação da regra do art. 44 do CP à pena privativa de liberdade imposta pela prática de crime em questão, tendo em conta que:
a) embora a Lei 8.072/90 determine o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado, nada dispôs acerca da suspensão condicional ou da substituição da mesma pena; b) a constitucionalidade do impedimento de progressão de regime encontra-se em discussão pelo Plenário do STF (HC 82959/SP, v. Informativos 315, 334 e 372); c) a Lei 9.714/98, posterior à Lei 8.072/90, ao ampliar a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, não abrigou princípio ou norma que obstasse a sua aplicação aos chamados ?crimes hediondos?, senão apenas àqueles cujo cometimento envolva violência ou grave ameaça à pessoa; d) no crime de tráfico ilícito de entorpecentes não há, em regra, o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa. Asseverou-se, ainda, que a exigência do regime fechado instituída pela Lei 8.072/90 refere-se à execução de pena privativa de liberdade imposta e, sendo esta substituída por pena restritiva de direitos, não haveria pertinência em cogitar-se do teórico regime fechado de execução como obstáculo à substituição já operada. HC deferido para cassar a decisão do STJ, restabelecendo a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, na forma da sentença condenatória de 1.º grau?.
Bem recentemente ao apreciar esta mesma matéria a Suprema Corte novamente se posicionou favorável à citada substituição, inclusive para o fim de conceder liminar suspendendo a execução da pena privativa de liberdade enquanto a paciente aguarda o julgamento do writ pleiteando a substituição por restritivas de direito, cuja decisão foi noticiada no site daquele Tribunal, no dia 02.12.2005, nos seguintes termos. Verbis:
?O plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu liminar a uma senhora de 68 anos para que ela aguarde em liberdade o julgamento de seu pedido de substituição da pena de três anos de prisão, em regime fechado, para uma pena restritiva de direitos. A liminar refere-se ao Habeas Corpus (HC) 85894, de Odete Duarte Tabosa, condenada por tráfico de drogas.
?Ela foi presa, processada, julgada e condenada por tentar levar ?considerável quantidade de cocaína? para dentro da delegacia onde o filho dela estava preso no Rio de Janeiro. No HC, a defesa alegou que a senhora tinha problemas no coração, diabetes e hérnia e que o cumprimento de sua pena na prisão tornaria inviável o tratamento médico, devido à idade avançada.
?O pedido, no entanto, foi rejeitado em todas as instâncias e, também, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que considerou incompatível e inaplicável ao crime de tráfico de entorpecentes a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. A defesa então recorreu à Suprema Corte, alegando constrangimento ilegal causado pela decisão do STJ, que manteve a sentença do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.(HC n.º 85.894, Rel. Min. Gilmar Mendes).
Seguindo esta nova tendência o Egrégio Superior Tribuna de Justiça reviu seu entendimento vindo também a admitir a aplicação da substituição ora em estudo. Verbis. ?1. A norma penal prevê a possibilidade de se aplicarem sanções outras que não a pena privativa de liberdade para crimes de pequena e média gravidade, como meio eficaz de combater a crescente ação criminógena do cárcere. 2. A disciplina da Lei n.º 8.072/90 e o disposto no Cód. Penal (art. 44) não são incompatíveis. 3. Em se tratando de delinqüente sem periculosidade, não há falar em óbice à substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.? (Rel. Min. Nilson Naves, Resp 754630, DJU de 21.11.2005, p. 324).
A tendência agora, tendo em vista que os dois Tribunais Superiores mudaram seu entendimento, é que esta matéria se pacifique segundo esta nova posição.
De qualquer forma é importante considerarmos que a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito, cuida-se de direito público subjetivo do acusado ou condenado. Portanto, é ele de ordem pública, não havendo inclusive sobre esta matéria que se falar em coisa julgada, o que possibilita que mesmo para os condenados que já tiveram negado este benefício, independentemente da fase em que o processo ou a execução da pena que as encontrem, podem buscá-lo junto aos tribunais competentes, sendo tal direito possível de ser pleiteado também através de revisão criminal ou de habeas corpus, cabendo aos advogados saberem fazer valer este direito.
Este é mais um prenúncio de que aos poucos a hediondade da lei de crimes hediondos vai se amainando, face a rejeição pelos julgadores à incoerência do nosso legislador ao pretender que impondo aos juízes que sempre sejam ?caneta pesada?, sem possibilidade de análise ao caso concreto para aplicar a pena segundo seja suficiente e necessária para reprovação e prevenção do crime – conforme se depreende do disposto no artigo 5.º, inciso XLVI, da Constituição Federal e 59, caput, do Código Penal -, irão resolver o problema da criminalidade do nosso País, o que, convenhamos, ou é demagogia ou é ingenuidade.
Notas
(1) Das Penas Restritivas de Direito, site: jorgevicentesilva.com.br
(2) TÓXICOS MANUAL PRÁTICO-Respostas às dúvidas surgidas com a Lei 10.409/02, 2.ª Edição, Curitiba, Juruá, 2003, ps. 177/183.
Jorge Vicente Silva é advogado, professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas e da Escola Superior da Advocacia da OAB/PR, pós-graduado em Direito Processual Penal pela PUC/PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, ?Tóxicos -Análise da nova lei?, ?Manual da Sentença Penal Condenatória?, e no prelo ?Crime Fiscal – Manual Prático?.
E-mail: jorgevicentesilva@ jorgevicentesilva.com.br;
advocacia@jorgevicentesilva.com.br?, Site ?jorgevicentesilva.com.br?
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