É admissível que um condenado à prestação de serviços à comunidade cumpra a pena em uma empresa de natureza privada com fins lucrativos?

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Em nosso ordenamento jurídico, inexiste disposição sobre a questão. Entendemos possível a celebração de convênios com entidades privadas com fins lucrativos na execução de medidas não privativas de liberdade, as denominadas penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade, em determinadas condições, sem que a parceria resulte em exploração de mão-de-obra, em relação empregatícia ou, ainda, em enriquecimento ilícito.

O art. 46, § 2.º, do Código Penal, quando faz menção às entidades nas quais pode haver eventual prestação de serviços à comunidade, refere-se não apenas a hospitais, estabelecimentos assistenciais, escolas etc., mas também a outras que, porventura, o Juízo da Execução venha a designar para o cumprimento do trabalho(1). Trata-se, sem dúvida, de um rol exemplificativo, que não descarta a participação de empresas privadas, ainda que de fins lucrativos, no processo de ressocialização do reeducando. Nada impede que se destine um apenado a prestar serviços em programas sociais desenvolvidos por entidades privadas. Pode ser um hospital, rede de ensino ou, até mesmo, estabelecimento de grande porte. A circunstância de as entidades privadas obterem lucros em sua cadeia de produção não as impede de promover programas assistenciais para melhorar a vida de uma comunidade, do meio ambiente ou de uma favela.

Verifica-se, na análise das Regras Mínimas das Nações Unidas sobre as Medidas Não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio(2)) e nos demais dispositivos legais existentes acerca do tema, que a participação da comunidade constitui fator primordial na reintegração do apenado ao convívio social, assegurando às medidas penais alternativas maior eficiência na prevenção do delito. Esse é o caminho a ser adotado pela política criminal brasileira, uma vez constatada a falência de seu sistema tradicional de repressão ao crime. Como sabemos, a superlotação nos presídios torna inviável que autores de delitos, cuja ofensa ao bem jurídico é considerada leve ou média nos termos da lei vigente, sejam afastados do convívio social. Essa segregação impossibilita o alcance da realização da finalidade principal da pena, que é a reabilitação do condenado.

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É evidente a necessidade de uma conjunção de esforços entre autoridades públicas e sociedade na efetiva aplicação do Direito Penal. Por essa razão, valendo-se dos princípios da hermenêutica e partindo de uma interpretação teleológica da norma, resta-nos considerar que não há empecilhos legais para a celebração de parcerias entre o Estado e empresas privadas, com ou sem fins lucrativos, para a execução das penas alternativas apropriadas ao caso. Uma vez designada pela autoridade competente, a entidade receberia o reeducando e encarregar-se-ia de transmitir-lhe as tarefas determinadas, as quais seriam regularmente fiscalizadas por meio de relatórios mensais entregues ao órgão de fiscalização da Vara de Execução Penal. Adotar-se-ia o mesmo procedimento utilizado pelas Centrais de Aplicação de Penas Alternativas em suas parcerias com entidades públicas e com Organizações Não-Governamentais (ONGs).

As idéias apresentadas no Capítulo I de Regras de Tóquio enunciam princípios básicos para promover o emprego de medidas não privativas de liberdade, permitindo maior participação da comunidade na administração da Justiça Penal. Além disso, em relação ao tratamento do condenado, pretende-se nele despertar o senso de responsabilidade perante a sociedade. À medida que permanece no convívio social, o reeducando estabelece um compromisso consigo mesmo e com seu próximo. A sociedade, por sua vez, passa a perceber que a criminalidade decorre de um fator social e que o sistema depende de sua participação para alcançar os objetivos traçados (subtítulo 1.2.). A própria Lei de Execução Penal, em seu art. 147, prevê que, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o Juiz da Execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução da pena, podendo, para tanto, requisitar a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.

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No tocante ao preso, o trabalho é remunerado, o que não ocorre com a pena alternativa de prestação de serviços à comunidade, cujo cumprimento deve ser gratuito(3), não havendo configuração de relação empregatícia por disposição expressa no art. 28,

§ 2.º, da Lei de Execução Penal. No caso de prestação de serviços em empresas privadas com fins lucrativos, inexistiria, igualmente, qualquer vínculo trabalhista, desde que a atividade do condenado fosse de natureza exclusivamente social. Não devemos nos esquecer de que a prestação de serviços à comunidade, na esfera criminal, não configura um trabalho comum, a ser regido pelas normas trabalhistas. Constitui pena criminal e como tal deve ser apreciada.

Em consulta formulada ao Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime UNODC (Viena/Áustria), respondeu-nos Carlos Eduardo Faria Coracini (Contractor Terrorism Prevention Branch, Division for Treaty Affairs), em e-mail de 11 de agosto de 2006:

?As Regras de Tóquio não contêm todas as normas sobre a matéria, como também não afastam a aplicação de instrumentos de proteção de direitos humanos. No Brasil, empresas privadas atuam de maneira muito positiva no que se refere ao trabalho de reeducandos em cumprimento de penas privativas de liberdade, qualquer que seja o regime prisional, inclusive regime fechado. Note que o trabalho durante o cumprimento da pena não é, de modo geral, gratuito. A maior parte dos tomadores de mão-de-obra presa são órgãos públicos, mas empresas privadas também o fazem de maneira crescente. A Lei de Execução Penal, complementada por normas administrativas, trata disso. Parte delas atua com fins de lucro. Mas pense em grandes empresas que organizam programas assistenciais para melhorar a vida de uma comunidade que habite um bairro desfavorecido (favelas, por exemplo); pense em programas de visitas de médicos ou assistentes sociais. Não vemos razão pela qual condenados pela prática de crimes de pequeno e leve potencial ofensivo em fase de cumprimento de pena de prestação de serviços à comunidade não possam ser envolvidos nesses projetos, dedicando algumas horas por semana para concretizá-los. Nada impede que se destine uma pessoa a prestar serviços comunitários no quadro de projetos sociais que beneficiem a comunidade, mesmo quando organizados por empresas privadas de fins lucrativos.?

O mesmo pensamento é de Sandra Valle (Consultora Sênior Inter-Regional do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime UNODC (Viena/Áustria). Segundo ela: ?não há obstáculo desde que o trabalho do apenado seja em atividade essencialmente social e haja autorização especial do Juízo da Execução? (e-mail recebido em 12 de agosto de 2006).

Observamos, pois, não haver obstáculos legais ou fáticos que impossibilitem a participação de empresas privadas com fins lucrativos na execução de pena de prestação de serviços à comunidade. Trata-se de uma medida inovadora, cuja viabilidade é notória, uma vez que atende à finalidade da pena, a qual é a de reabilitar o homem que se desviou do bom caminho, atendendo ao princípio constitucional da dignidade humana e promovendo a participação da sociedade na aplicação do Direito Penal.

Em suma, é perfeitamente admissível a prestação de serviços à comunidade em empresa privada com fins lucrativos, desde que:

1. seja a atividade do apenado essencialmente social;

2. haja decisão judicial fundamentada.

Para tanto, em um caso concreto, deve o patronato ou a Central de Penas Alternativas apresentar ao Juiz da Execução Penal um pedido nesse sentido, acompanhado de documentação apropriada e fundamentação, para que ele possa ter um juízo de valor positivo a respeito da entidade privada e da natureza do trabalho a ser executado pelo apenado.

Notas:

(1) Art. 149 da Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal).

(2) Regras de Tóquio: comentários às regras mínimas das Nações Unidas sobre as medidas não-privativas de liberdade. Tradução de Damásio de Jesus. São Paulo: Paloma, 1998.

(3) Art. 30 da Lei n.º 7.210/84.

Damásio de Jesus é presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus (CJDJ). Procurador de Justiça aposentado e entre as diversas atividades, atua na ONU e é membro do Conselho Jurídico da FIESP.

É também autor de inúmeras obras nas áreas Penal e Processual Penal.