Muito embora a Constituição Federal de 1988 preveja, de modo expresso, que “Art. 5.º, XLVII: não haverá penas: a) de morte, salvo nos casos de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”, o Decreto Presidencial n.º 5.144 de 16 de julho de 2004, sob o falso argumento de regulamentar o art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565 de 19.12.1986) acabou por instituir, em minha opinião pessoal, a pena de morte no Brasil. A chamada “guerra contra as drogas”, carro-chefe da administração republicana nos Estados Unidos, prevê a adoção de diversos instrumentos de cooperação no combate ao tráfico de entorpecentes, todas marcadas por desproporcional rigor na aplicação de penas, especialmente após a criação do chamado RICO Act (Racketeer influenced and corrup organisations statute) de 1961, o qual prevê que a mera participação em uma organização criminosa pode sujeitar o autor do fato a uma pena de vinte anos para cada participação comprovada, além de outros vinte anos pela simples associação (conspiracy). Mesmo nos Estados Unidos a “lei do abate” tem sido profundamente reestudada, após recente episódio envolvendo o assassinato de civis inocentes no espaço aéreo peruano. No caso brasileiro, a lei penal sujeita o autor do crime de tráfico de entorpecentes a uma pena que varia entre 3 e 15 anos de reclusão, mas condiciona a execução da pena a um processo judicial através do qual serão asseguradas a ampla defesa e contraditório em favor do acusado. A chamada “lei do abate” de aeronaves suspeitas de envolvimento no transporte de entorpecentes autoriza a supressão da vida humana, regulamentando a pena de morte no Brasil, o que de modo algum pode ser admitido à luz da Constituição Federal de 1988. O abate de aeronaves consoante o sistema constitucional brasileiro somente se revelaria possível nos casos de defesa da segurança nacional, como por exemplo quando a integridade física das pessoas no solo se encontra em perigo. Neste caso, o homicídio praticado por um agente do Estado, muito embora possa ser considerado um fato típico, não sujeitará o agente a qualquer procedimento criminal, na medida em que estará agindo no estrito cumprimento do dever legal. Existe uma ponderação de bens que somente pode examinada a partir do caso concreto, a qual autoriza condutas que ofendem a legislação penal, pois se ambiciona proteger bens de maior valia no caso concreto. A supressão da vida humana dos passageiros de um avião suspeito de envolvimento com o transporte de entorpecentes de modo algum se justifica, pois além de não propiciar a defesa do suspeito, afastando a apreciação do Poder Judiciário (art. 5.º, XXXV, da CF de 88), determina a aplicação de pena capital vedada por nosso sistema constitucional. A simples gravidade do crime não pode conduzir à aplicação da pena de morte, pois do contrário teríamos também de aceitar que a mesma pena fosse aplicada para todos os demais traficantes e não somente por aqueles que se utilizassem do transporte aéreo. Crimes iguais devem receber do legislador idêntico tratamento, mas nem por isto se admite a “destruição” de caminhões que transportem drogas pelas estradas do país. Qual é a real diferença? Ademais, o Brasil é signatário de inúmeros pactos internacionais – como o pacto de San José da Costa Rica, de 1969, por exemplo – que impedem a adoção de medidas que autorizem, de forma direta ou não, a aplicação da pena de morte, a qual merece toda a repulsa da comunidade jurídica, por conta de inúmeras razões político-criminais que extrapolam os limites deste debate. A simples escolta da aeronave até os limites do espaço aéreo nacional seria medida mais que suficiente para estes casos. Contudo a Presidência da República optou por emprestar inaudita elasticidade ao conceito de segurança pública, ferindo claramente os mais comezinhos princípios de proteção internacional dos direitos humanos, medida que deve ser lamentada pela comunidade jurídica, pois significa retrocesso histórico da política internacional brasileira para o setor. O decreto se manifesta claramente incompatível com a Constituição Federal, razão pela qual a aplicação da “lei do abate”, nos termos propostos, implicará a responsabilização penal de todos os envolvidos, inclusive da autoridade responsável pela ordem.
Eduardo Appio
é juiz federal em Cascavel-PR, doutorando em Direito Constitucional pela UFSC e autor de livros sobre o tema.