É difícil evitar pleonasmos e redundâncias para abominar e repelir o projeto que propõe a criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Não interessam eventuais boas intenções, que delas o inferno está cheio, como escreveu São Bernardo.
Quem errou, que seja punido nos tribunais. Vivemos num Estado de Direito. E o projeto é, antes de mais nada, desnecessário até para as boas intenções que porventura tenham tido seus redatores.
Para não chatear os leitores, vou fixar um outro contexto, escrevendo sobre tema de domínio conexo e recordando uma figura exemplar.
No Renascimento, uma dança realizada durante procissão católica, surgida no então condado de Pádua, próximo à Espanha, inspirou a palavra “pavana” como sinônimo de reprimenda, descompostura. Provavelmente a palavra, feminino de pavano, redução de padovano, nasceu da expressão danza padovana.
Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, a utilizou em artigo publicado no Jornal do Brasil, no dia 2 de junho de 1978: Pavana para um direito traído. O famoso pensador e crítico brasileiro comentava o livro O Direito, um Mito (Editora Rio), de João Uchôa Cavalcanti Netto, lançado no ano anterior.
Dizia Tristão de Athayde, membro da ABL, tratar-se de “um ensaio dos mais originais e temerários que se têm escrito entre nós”. Não é difícil identificar no livro, agora relançado, alguns dos temas que desconcertaram o célebre intelectual, marcado por um catolicismo exemplar. Eis pequena amostra: “Lúcifer abarrotou de crucifixos os tribunais do mundo inteiro. Nisso, porém, antes desvendou o irremediável paganismo do Direito: porque o símbolo só entra onde não se consegue introduzir o simbolizado, a cópia existe para se prescindir do original e o retrato se por um lado recorda por outro grita que o retratado está ausente” (páginas 122-123).
Foi na capital da República, em 1977, que conheci o “doutor Alceu”, como era também chamado com irreverência por Nelson Rodrigues, que sempre implicava com ele. Estávamos ali para a entrega dos prêmios Brasília de Literatura, atribuídos pelo MEC e pela Fundação Cultural de Brasília. O conto-título de meu livro de estréia, Exposição de Motivos, já transposto para a televisão por Antunes Filho, tratava da censura, praticada por diretora neonazista num colégio do Brasil meridional. Estava eu condenado pela Lei de Imprensa e pela Lei de Segurança Nacional, por conto publicado em jornal, e premiado pelo MEC, por conto publicado em livro!
Jamais esquecerei aquele encontro com dr. Alceu, de quem guardei boas lembranças. Ele me disse que, quando menino, encontrava Machado de Assis passeando pelas ruas do Rio. Na hora, com a arrogância comum aos jovens, achei que ele estava caducando, afinal tinha 84 anos. Mas, não. Ele realmente fora contemporâneo de nosso maior escritor, pois tinha 15 anos quando o Bruxo do Cosme Velho faleceu.
Todas as referências literárias que fazia não escondiam preocupação com a transcendência. Foi, porém, uma terceira coisa que me encantou. Lá pelas tantas, mancando, porque se recuperava de um desastre, subiu à tribuna para fazer duro discurso contra a censura.
Lembrei dele quando, semana passada, alguns jornalistas, hoje em instâncias decisivas, deixaram a procissão ou pavana de outrora e, “sem querer, querendo”, como dizem as crianças, propuseram que entreguemos a liberdade duramente reconquistada para que eles possam “orientar, disciplinar e fiscalizar” a atividade jornalística no País!
Vai começar tudo de novo? Não. O ovo não é de serpente. É de minhoca. E de minhocas estão cheias as cabeças que conceberam o monstrinho.
Deonísio da Silva é escritor.