Está em questão a autorização legal de não identificação da maternidade. A gestante compareceria à unidade de saúde, recebendo assistência em relação ao pré-natal e parto, sendo-lhe facultado não assumir a maternidade da criança que gerou. Seus dados de identificação e genéticos permaneceriam sob sigilo e só seriam revelados por ordem judicial, para fins específicos como, por exemplo, tratamento de saúde da criança, quando as tais informações forem indispensáveis. A criança nascida de parto anônimo seria encaminhada, em seguida, para adoção. Em alguns países, como França e Luxemburgo, é autorizado por Lei a realização deste procedimento.
O tema e as atuais ponderações sobre a possibilidade do parto anônimo, no Brasil, vieram à baila impulsionados pelas informações reiteradas pelos meios de comunicação de massa de abandono e morte de recém-nascidos. Mães de baixa condição financeira e que não têm condições de criar seus filhos ou mães que tiveram gravidez indesejada poderiam, por este meio, preservar a vida do feto, evitando o aborto, ou do recém-nascido, não praticando o abandono ou infanticídio.
O abandono de recém-nascidos em depósitos de lixos, lagos e matas tem provocado a comoção nacional. No Brasil, tornou-se freqüente, sempre que um problema social é veiculado, com certa ênfase, pelos meios de comunicação de massa, surgir a idéia da feitura de uma nova lei como remédio definitivo para uma dada patologia social.
Parece temerário que um projeto de lei surja como efeito ou resposta a um estímulo dos meios de comunicação de massa, sem um acurado estudo com base científica sólida dos dados da realidade nacional.
Antes de se fazer uma lei é necessário ter maior clareza acerca do mal social que ela pretende debelar e ponderar sobre os efeitos colaterais que pode trazer. Com este objetivo algumas questões devem ser ponderadas: existem dados estatísticos significativos sobre abandono ou morte provada de recém-nascidos? Existem pesquisas consistentes sobre as causas de abandono e de morte provocada de recém-nascidos? A referência a casos isolados, ainda que numerosos, sem a devida contextualização pode traduzir relevante componente emocional, importante, mas insuficiente por si só para responder às questões sociais de fundo, quais sejam, uma sociedade de classes, marcada por uma terrível exclusão social, com altíssimos índices de concentração de terra e de renda. Debater a família injusta, ou a ausência de família, diante do abandono, requer, também, debater a sociedade injusta que fabrica as premissas do abandono.
Ademais, não se pode igualar, como num passe de mágica, as razões históricas, sociais e culturais de países europeus, com a realidade brasileira, importando soluções sem que se faça, ou menos quantum satis, as devidas adaptações.
Nas discussões havidas até o momento, não são referidas pesquisas quantitativas, nem tampouco pesquisas acadêmicas específicas sobre gravidez indesejada e demais causas do abandono de recém nascidos e do infanticídio. Assim, face à ausência de dados torna-se difícil apurar a propriedade e a conveniência do tratamento que está sendo dado à matéria pela via legislativa. De outra parte, a solução legislativa pode ser uma via simples de representar uma falácia, isto é, uma imagem especular invertida do real.
Somente situações efetivamente alarmantes é que poderiam autorizar medida tão drástica, como a do parto anônimo. Notícias jornalísticas parecem uma base demasiado precária para a tomada de decisão de tal gravidade. Antes de se editar uma lei, importa amadurecer a reflexão sobre bases sólidas.
Por outro lado, quanto aos efeitos colaterais de eventual regulação nos termos propostos, algumas perguntas devem ser suscitadas. De alguma forma, a possibilidade do parto anônimo não poderia incentivar a irresponsabilidade e reificação do humano? Uma gravidez indesejada se resolveria com a entrega de seu ?produto? a uma unidade de saúde. Quanto menos responsáveis, menos humanos nos tornamos. Limite e responsabilidade num país e numa sociedade frágeis, sem a função paterna presente e exercida, abre as portas para mais uma hemorragia legislativa, supondo que as leis podem mudar as condições materiais de um povo, isto é, mais uma transformação a partir da elite dominante.
Diante da proposta de admissão de anonimato da parturiente, parece evidente que o aforismo romano ?mater semper certa est? sofre abalo jamais antes ocorrido em relação à certeza da maternidade. Se até os dias correntes a mãe é sempre certa, o pai não. Grande número de crianças vem à luz sem paternidade definida. A única chance que estas crianças têm de um dia conhecer o pai ou ascendente genético se dá pela informação da mãe e pelo exercício do direito à investigação de paternidade. O parto anônimo quitaria dessas crianças, que sequer nasceram, a possibilidade de conhecer seus ascendentes. Não se estaria, assim, diante de um retrocesso? Havendo parto anônimo, faticamente seria impossível ao nascido ter acesso à filiação, à semelhança da situação dos filhos ditos ilegítimos, quando da vigência do art. 358 do Código Civil de 1916. Dessa conquista, vale dizer, o pleno acesso à filiação, não se pode descurar.
Não se pode negar, portanto, que o remédio legal que se pretende aplicar para a solução de um mal social tem efeitos colaterais demasiado graves. Logo, prescrevê-lo, assim, de forma genérica e de afogadilho, não parece ser procedimento recomendável.
A afirmação pura e simples de que a filiação sócio-afetiva poderia suprir a ausência de filiação biológica, pela via da adoção de recém-nascido de parto anônimo, pode criar uma falsa impressão de que a filiação biologia é tout court desprestigiada sempre em relação à sócio-afetiva, o que não parece ser sustentável nem sociológica, nem psicológica, nem juridicamente.
Há, por fim, que se tomar cuidado para que não ocorra um processo de desresponsabilização dos genitores pela geração e nascimento de uma criança. Permitir simplesmente que o recém-nascido seja entregue para adoção sem que exista, ao menos, uma parte de assunção de responsabilidade, significa dar destaque desmedido à esfera dos direitos e desconsiderar a existência de uma esfera de deveres, também decorrentes de qualquer ato praticado. Assim sendo, é relevante questionar qual a extensão de responsabilidade deve ser mantida para os genitores, de modo que, mesmo que não se estabeleça uma relação paterno-filial, o recém-nascido tenha garantiras mínimas de atendimento de seus direitos enquanto sujeito de direito. Ficam, portanto, estas ponderações iniciais, para uma reflexão que demanda aprofundamento.
Luiz Edson Fachin é professor titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Silvana Maria Carbonera é professora de Direito Civil do Curso de Direito da Universidade Positivo.
Marcos Alves da Silva é professor de Direito Civil do Curso de Direito da Universidade Positivo e das Faculdades Integradas do Brasil.