A Constituição Federal de 1988 garante: a saúde é direito de todos e dever do Estado. Na teoria o artigo 196 é de extrema importância, mas será que na prática é isso que acontece? Usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) em Curitiba afirmam que filas e demoras no agendamento de exames e cirurgias são frequentes. Muitos temem, inclusive, por dependerem do SUS como única forma de acesso à saúde.
Após fraturar um osso do braço em acidente de trânsito, Osvaldo de Freitas, 71 anos, ficou cinco dias internado pelo SUS no Hospital São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), à espera de vaga em outro estabelecimento para ser operado. Foi transferido para o Hospital do Trabalhador, em Curitiba, onde esperou mais 20 dias para fazer a cirurgia. Em duas ocasiões, passou o dia em jejum para realizar o procedimento, que foi adiado. “O atendimento por parte do hospital foi muito bom, mas esperar a peça que faltava para finalizar o meu tratamento foi extremamente difícil. Junto comigo no quarto vi muitas pessoas sofrendo também pela demora no atendimento”, relata Osvaldo.
O usuário Vanderlei de Souza conta que esperou uma tarde inteira para poder fazer um Raio-X e ser atendido pelo médico. “Toda vez que preciso de um atendimento é essa demora. Como não tenho plano de saúde, tenho que depender do SUS, o que não é nada bom”, diz. Clarisse do Rocio Schechtel fala que tem medo de depender do sistema público em um momento de emergência. “Tenho Diabetes e pressão alta. Não sei o que pode acontecer caso sofra uma crise. Tenho medo de depender do SUS”, relata.
Segundo o Ministério da Saúde (MS), o SUS é descentralizado em todo o Brasil. Ou seja, não há hierarquização e os gerentes locais (secretarias municipais e estaduais) são responsáveis por todo o atendimento. Em Curitiba, pelo município ter gestão plena do SUS, a responsabilidade por essa demora de atendimentos é da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
De acordo com Anna Paula Penteado, superintendente de gestão da SMS, “todos os hospitais que fazem atendimento pelo SUS na capital têm a prefeitura de Curitiba como gestora”, diz. Sobre as filas e demoras no atendimento citadas pelos usuários, Penteado afirma que a razão é a sobrecarga no sistema. “Trinta e sete por cento das internações feitas mensalmente em Curitiba atendem pessoas de fora. Por sermos referência, recebemos uma grande pressão do interior, região metropolitana e litoral. Quando faltam atendimentos nesses locais, os pacientes procuram os hospitais de Curitiba”, explica.
Questionada sobre a solução da demora verificada em Curitiba, a superintendente afirma que o caminho está no trabalho em conjunto. “Na saúde não existe solução mágica. Precisamos trabalhar em outros pontos para evoluir”, diz. Uma das ações seria o trabalho intersetorial na área da violência. “A saúde tem papel importante, mas reduzir números de acidente de trânsito, violência urbana, homicídios e uso de drogas abaixaria também essa grande procura”, aponta. A construção, por parte do Estado, de referências para a região atendendo pacientes no próprio município e a determinação de que tipo de pacientes são atendidos também seriam soluções segundo ela.
Emenda 29
Para Irvando Carula, superintendente de sistemas de gestão de saúde da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), a melhoria para o SUS está na regulamentação da Emenda 29, em trâmite no Congresso há mais de cinco anos. “Essa emenda regulamentará o que são considerados gastos com saúde. O que hoje é considerado gasto com saúde, pode não ser mais com essa regulamentação”, diz. A Emenda permitiria, portanto, mais investimento em áreas focadas no desenvolvimento da saúde pública.
Pacientes passam por novo tipo de triagem
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Até setembro do próximo ano, as unidades básicas e centro de emergências de Curitiba contarão com a Triagem de Manchester. O sistema consiste na seleção da ordem de atendimento de pacientes conforme seu estado de saúde. A situação é diferenciada como emergente (Vermelho), muito emergente (Laranja), urgente (Amarelo), pouco urgente (Verde) e não urgente (Azul). Cada uma das cores define um tempo de espera limite até o atendimento médico.
De acordo com Anna Paula Penteado, superintendente de gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o sistema tem como objetivo priorizar o atendimento. “Isso reduz o conflito dentro das unidades de atendimento”, diz. A triagem é feita por meio de perguntas específicas. “De acordo com as respostas os médicos e enfermeiros dão a cor final ao paciente”.
De acordo com ela, o sistema permite, por exemplo, que pessoas em estado grave não tenham atendimento prejudicado pela lotação causada por pessoas com situações simples e que poderiam ser atendidas em outras unidades. (LC)
Iniciativa privada
A construção de um modelo de ajuste para que a iniciativa privada possa prestar serviços públicos de saúde é a solução apontada pelo procurador do Estado do Paraná, Fernando Borges Mânica. Em sua tese de doutorado, presente no livro O Setor Privado nos Serviços Públicos de Saúde, Mânica aponta que atualmente parcerias firmadas de maneira inadequada, contratos de gestão, termos de parceria, convênios e contratos de prestação de serviço não são adequados para o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Para ele, o SUS é um modelo eficiente de oferecimento de serviços público à população. “O problema é que nesses últimos 20 anos o SUS não acompanhou o desenvolvimento da saúde. A Medicina cresceu muito e os serviços desenvolvidos tiveram custo ampliado. Existe um descompasso entre a possibilidade de prestação de serviço para toda a população e a possibilidade de que o estado brasileiro preste esse serviço para todas as pessoas”, afirma.
A implementação de um modelo com leis mais transparentes poderia trazer, inclusive, maior segurança jurídica às entidades privadas. “É necessário uma alteração na lei orgânica de saúde, para que nela estejam previstas, de maneira clara, termos para que ambos (privado e público) tenham segurança jurídica nessas parcerias”, diz. Segundo ele, atualmente cada município utiliza um modelo diferente. “Nossa lei permite parcerias, mas não existe uma única forma de contrato. Precisamos de um modelo de gestão que leve a sério essas parcerias”, opina.
Essa mudança, no entanto, seria o segundo passo. O primeiro está na regulamentação da Emenda 29. “Dinheiro resolve muita coisa, mas atualmente o Brasil investe menos de 4% de seu PIB (Produto Interno Bruto) na área de saúde. A regulamentação prevê investimento de 12% pelos estados 15% pelos municípios”, explica. “É absolutamente necessário o aumento do gasto público, mas para isso dependemos de uma mobilização na esfera federal”. (LC)