Lourenço não superou a dor |
Abel Moura Magalhães, Natalina dos Santos Lima, Daniele da Silva Rabelo, Vanira da Costa, Luiz Laurindo da Silva. Esses são apenas alguns exemplos que fazem parte de uma triste estatística. Pessoas de várias faixas etárias, sem nenhum vínculo, mas com o mesmo destino. Tiveram a vida interrompida por uma bala perdida, nos últimos anos, em Curitiba.
Somam-se a esses números dois casos que chamaram a atenção de toda a população da capital nas últimas duas semanas. A jovem estudante de Engenharia Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Débora Borin da Silva, de 24 anos, que aguardava o ônibus em um ponto próximo ao Shopping Jardim das Américas, foi atingida nas costas por um projétil no dia 16. Levada para o Hospital Cajuru, a vítima passou por uma cirurgia e agora está internada em um dos quartos da instituição. Ainda não se sabe de que arma saiu o tiro que atingiu a jovem. O disparo aconteceu durante uma tentativa de assalto a uma agência Bradesco. Seguranças do shopping perceberam a ação dos bandidos e entraram em ação, mas, durante a confusão, a bala perdida atingiu Débora.
Também na semana retrasada, no dia 19, um professor de Microbiologia da UFPR foi atingido por uma bala perdida. O veterinário Luiz Felipe Caron, de 31 anos, estava acompanhado de seus dois filhos, de 2 e 4 anos, quando foi atingido por um tiro na nuca enquanto dirigia nas proximidades da Ceasa, na BR-116. No momento em que foi atingido, policiais e um grupo de assaltantes trocavam tiros. O professor foi internado em estado grave na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital do Trabalhador, em Curitiba. Ele permanece internado na instituição. Os familiares das duas vítimas não estão falando sobre o assunto até que o estado de saúde dos dois esteja definido.
Não existem números ou estatísticas oficiais sobre balas perdidas na Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) ou na Delegacia de Homicídios de Curitiba. No entanto, baseando-se na divulgação dos últimos casos pode-se verificar que esses acontecimentos estão se tornando mais freqüentes. Conforme o arquivo de O Estado, desde o início do ano, doze ocorrências de balas perdidas na capital foram noticiados, ou seja, uma média superior a uma vítima por mês.
No entanto, metade dos casos ocorreu neste mês. "Não existe segurança. Quantas outras pessoas terão que perder a vida para que alguém tome uma providência", protesta Lourenço Rabelo Campos. Ele é o pai da menina Daniele da Silva Rabelo, de quatro anos, que foi atingida por uma bala perdida no ano passado. Segundo o pai, o responsável pelo disparo foi preso uma semana após o acidente, mas a dor da perda não foi reparada. O indivíduo participou de um tiroteio nas proximidades da casa de Lourenço, no bairro Centenário, e estava sob a custódia do Estado.
Lourenço ressalta que contou com o apoio de familiares e amigos, mas ainda não conseguiu superar o drama. A menina chegou a ser socorrida após o acidente, mas morreu dois dias depois no Hospital Cajuru. "Acordamos pagando imposto todo dia, e não temos acesso a coisas básicas como a segurança. É um direito de todo cidadão, mas nem isso conseguimos", reclama.
Ação
O advogado do pai de Daniele está estudando a possibilidade de entrar com uma ação contra o Estado por causa do acidente. "Ano passado perdi minha filha, mas a qualquer momento pode ser o filho de qualquer outra pessoa. Se ninguém cobrar, nada muda. Exigimos o mínimo de segurança. Minha filha foi atingida dentro de casa e uma semana depois outra mulher também foi baleada sem sair de sua residência. Neste ano, outros casos apareceram. A que ponto chegamos. Antes era arriscado sair para a rua, agora vamos ter que ficar preocupados em nos proteger dentro de casa", completou Lourenço, que tem outro filho, de sete anos.
Cajuru atendeu 647 vítimas baleadas
De acordo com o Hospital Cajuru, uma das instituições que mais recebe vítimas feridas por arma de fogo, de janeiro a outubro deste ano, foram realizados 647 atendimentos a vítimas baleadas. Esses números, no entanto, não estão distinguidos por homicídio ou bala perdida. É uma média de 65 atendimentos por mês. No ano passado, essa média ficou em torno de 80 procedimentos, e em 2002, de 61.
Segundo o chefe do Departamento de Clínica Cirúrgica do Hospital Cajuru, Luiz Carlos Von Bahten, são números expressivos e que geram um alto custo de atendimento para a instituição. Cada paciente atingido por arma de fogo gera um custo de US$ 692 no Cajuru, para um tratamento que exige no mínimo sete dias para recuperação dos pacientes menos graves. "Os custos são altos e sabemos que os casos não param. Sem dúvida, o desarmamento deve ter favorecido a diminuição dessas ocorrências, mas ainda há muito o que fazer para reduzir o número de vítimas", disse.
Repasse
O repasse feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não cobre todas as despesas realizadas pela instituição. O repasse fica em torno de R$ 15 mil mensais, mas o custo real do hospital gira em torno de R$ 20 mil. "O hospital acaba pagando a diferença, pois não vai deixar de atender um paciente grave", completou.
O chefe do Departamento de Clínica Cirúrgica realizou um estudo sobre o impacto dos acidentes com armas de fogo nos custos da instituição. Durante a formulação da publicação do estudo, ele encontrou dados surpreendentes. Números do Ministério da Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que nos últimos 18 meses, ocorreram 70 mil homicídios por arma de fogo no Brasil. Apesar de esses números parecerem normais com a situação da violência no País, são mais mortes do que na Guerra da Chechênia, que teve 30 mil vítimas, do que na Guerra do Vietnã, com 56 mil mortos, e apresenta o mesma quantidade de mortos da Guerra na Bósnia. "É uma calamidade pública, e ninguém realmente abriu os olhos pra isso. O custo para tratamento de um ferido por arma de fogo é alto e, independente de ser bala perdida, muitas pessoas estão morrendo", afirmou. O estudo de Luiz Carlos foi publicado na Revista de Código Brasileiro de Cirurgiões, em 2003. (RCJ)
Polícia minimiza problema em Curitiba
Apesar de não apresentar estatísticas, a Delegacia de Homicídios (DH) de Curitiba considera que os casos de balas perdidas em Curitiba são esporádicos. Para as autoridades policiais, são poucos casos se comparados aos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo. Nesses locais, o número de homicídios chega a ser cem vezes maior do que o registrado na capital paranaense, destaca o delegado titular da DH, Luiz Alberto Cartaxo de Moura.
Ele explica que a definição de bala perdida é complexa e que, muitas vezes, o que parece ter sido um acidente, pode se tratar de um homicídio. Por isso, segundo ele, durante um evento em que ocorre um disparo, é complicado apontar se o motivo da morte ou do ferimento de uma vítima foi bala perdida. "Os alvos próximos objetivados não são atingidos e o projétil acaba acertando um terceiro indivíduo a uma distância relevante. Essa pode ser uma cena que representa um caso de bala perdida, mas não é necessariamente garantia de que o disparo foi acidental. A definição do que é bala perdida é confusa e complexa. É complicado inclusive ter o controle para saber de onde o disparo foi efetuado", afirma o delegado.
Ele também ressalta que todo policial recebe um treinamento específico para uma situação de risco, como um tiroteio, por exemplo. Um dos principais ensinamentos é não agir através de disparos, para evitar colocar em risco a vida de pessoas que estejam nas proximidades da ação. No entanto, segundo o delegado, nem sempre isso é possível. "Se o bandido disparar contra o policial no seu cumprimento do dever, a revida se torna legítima defesa. O maior valor que se procura passar nos treinamentos é a proteção da sociedade, mas se o sujeito está atirando em sua direção, o policial se vê obrigado a responder com disparos", diz. "É uma discussão complicada. Os policiais não receberam treinamento para atirar. Eles só vão agir dessa maneira em determinadas situações."
Treinos
Os policiais participam de treinamentos com simulações de situações de risco, além de obter outros ensinamentos na Escola Superior da Polícia Civil (ESPC). "O uso da arma é o último estágio dentro de um treinamento. O tema fundamental é a preservação da vida", destaca o professor de instrução de tiro da instituição e delegado da Delegacia de Explosivos, Armas e Munições de Curitiba, Luiz Fernando Viana Artigas. Ele conta que todo o ensinamento se baseia na consciência e responsabilidade do policial, para preservar a segurança de toda a população. Somente em relação ao disparo, são realizadas 80 horas de aulas de instrução na ESPC. "Existe uma proposta para aumentar mais essa carga horária", revela.
Quando há confronto armado entre policiais e bandidos, afirma Artigas, toda atenção é necessária, justamente para evitar que terceiros sofram com a ação. Mas geralmente, destaca ele, os casos de balas perdidas que ocorrem nos bairros de Curitiba são provenientes de disputa entre gangues. "A característica da criminalidade na capital é diferente de São Paulo e do Rio, onde os números são alarmantes. Não dá para se comparar. No entanto, todos os policiais daqui são preparados para agir com responsabilidade. Nesses casos, a prioridade é a segurança da população e isso, sem dúvida, é o que acontece", afirmou. (RCJ)
Alguns casos de bala perdida em Curitiba nos últimos anos:
Luiz Felipe Caron – 19/11/04
O veterinário, professor de Microbiologia da UFPR, de 31 anos, foi atingido há duas semanas em frente ao Ceasa. Ele foi surpreendido por um tiroteio entre policiais militares e três assaltantes que tentavam fugir com um carro roubado. Seu estado ainda é grave
Débora Borin da Silva – 16/11/04
A estudante de Engenharia Civil, de 24 anos, foi atingida nas costas durante um tiroteio entre seguranças e assaltantes nas proximidades do Shopping Jardim das Américas. Ela passou por uma cirurgia e ainda está internada.
Ogacir de Paula Júnior – 06/11/04
O menino de 13 anos foi atingido na cabeça no bairro Fazendinha, enquanto passava perto de um bar na região. O autor do disparo foi preso, mas a vítima morreu.
Luiz Laurindo da Silva – 05/11/04
O aposentado de 77 anos foi baleado no Uberaba dentro de casa, durante um tiroteio entre assaltantes e seguranças de um supermercado da região.
Bruno Henrique de Cristo Gonçalvez – 04/11/04
O menino de 5 anos foi ferido com dois tiros no pé, durante um tiroteio na Vila Guaíra, em Curitiba.
Bala perdida atinge o Edifício Paraná – 02/11/04
Nenhum morador foi atingido pelo projétil que atingiu o prédio no bairro Cabral, durante a madrugada. No dia seguinte, a marca da bala assustou todos os condôminos.
Antônio Carlos da Maia – 16/08/04
O homem de 36 anos, foi atingido no peito, quando estava dentro de um bar, no Bairro Cajuru. Não suportou o ferimento e faleceu a caminho do hospital
Getúlio Gonçalvez Dias – 12/08/04
O homem de 38 anos, morreu ao ser atingido por uma bala perdida em frente à agência do bando Itaú, na rua João Negrão, no centro de Curitiba.
Bruno Ferreira da Silva – 24/06/04
O menino de 13 anos foi atingido na boca por uma bala perdida, enquanto brincava com outras crianças nas proximidades de sua casa, no bairro Tatuquara.
Gabrielle dos Santos – 17/06/04
A menina de quatro anos foi ferida na perna por uma bala perdida. Ela estava caminhando com a mãe quando foi atingida, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC).
Geriel Lima dos Santos – 18/04/04
O motoboy, de 24 anos, foi baleado ao voltar do trabalho, durante a madrugada, no bairro Sítio Cercado.
Ana Cristina Santos – 27/01/04
A jovem de 25 anos foi baleada durante uma tentativa de assalto na agência do Bradesco, no bairro Juvevê. O disparo ocorreu durante um tiroteio entre os três assaltantes e o segurança do banco.
Natalina dos Santos Lima – 15/10/03
A mulher de 54 anos e mãe de cinco filhos foi vítima de bala perdida enquanto lavava louça dentro de casa. Ela foi atingida na cabeça na Vila Nossa Senhora da Luz, na Cidade Industrial de Curitiba (CIC)
Abel Moura Magalhães – 06/08/03
O jovem de 22 anos foi atingido por uma bala perdida, enquanto caminhava por volta das 21h no bairro Cajuru.
Vanira da Costa – 02/08/03
A costureira de 63 anos foi atingida na testa por uma bala que invadiu seu quarto no Bairro Alto.
Daniele da Silva Rabelo – 27/07/03
A menina foi ferida na cabeça por uma bala perdida no bairro Centenário, dentro de casa. Socorrida, ela foi levada até o Hospital Cajuru, mas dois dias depois morreu.
Karina Cristina Santana – 24/12/01
A menina de sete anos foi vítima de bala perdida na Vila Nossa Senhora da Luz, na CIC. Ela brincava em frente de casa quando foi atingida pelo projétil.
Fonte: Arquivo de O Estado do Paraná.