Quando se fala em pedágio, já aparece um ponto de discórdia no ar entre aqueles que defendem e os que condenam a concessão de rodovias à iniciativa privada. As categorias que necessitam do transporte para a sobrevivência de seus negócios acham que a tarifa é cara demais. Por outro lado, acreditam que os governos responsáveis pelas estradas em questão não conseguiriam dar conta da manutenção. Diante disso, o que os usuários querem é a redução ou isenção de alguns impostos que são cobrados justamente para a conservação, recuperação e construção de rodovias. Para eles, não dá para cobrar por um benefício que não vem. Mas este não é um problema fácil de ser resolvido. Assim, o pedágio continua rendendo discussões.
Para alguns especialistas, a concessão de rodovias já não é mais uma tendência. É uma realidade, inclusive em países de primeiro mundo. Cada vez mais se desonera do governo a responsabilidade pela manutenção ou construção de infra-estrutura. Um dos países que está seguindo essa linha é a China, a nação que mais cresce no mundo atualmente. ?Temos visto os governos incompetentes para construir e manter rodovias. O mundo inteiro está pedagiando as estradas. Não adianta tapar o sol com peneira. No Brasil, se a iniciativa privada não entrar, não vamos comemorar o crescimento econômico que se espera, ainda mais que 60% do transporte do Brasil é rodoviário?, afirma Flávio Benatti, presidente da seção de cargas da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
Foto: Fábio Alexandre |
Transportadores de cargas reclamam que o alto custo do pedágio encarece o preço das mercadorias. |
Mas, para ele, nem tudo é maravilha. ?Não é uma questão de fazer apologia ao pedágio, mas é preciso fazer alguns questionamentos. Para mim, o pior é não ter estrada. O modelo de concessão em determinadas vias não é ruim. O que se precisa é discutir a tarifa?, aponta Benatti. Este, aliás, é o principal ponto da discórdia, não importa onde haja a concessão de rodovia. ?A discussão hoje é para baixar o valor do pedágio?, afirma.
Entidades de classe do setor de transportes acham que a situação está ficando inviável por causa do valor do pedágio. De acordo com os transportadores, as tarifas estão encarecendo os produtos transportados por rodovias. Toda a população acaba pagando, pois os custos com pedágio são repassados aos preços das mercadorias. ?Hoje, o pedágio é mais caro do que produzir o grão da soja?, compara Valmor Weiss, presidente da regional Sul da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC). ?Este é um custo da sociedade, é o custo Brasil. Quando alguém compra um produto no supermercado, também está pagando pelo pedágio?, avalia João Batista Dominici, vice-presidente executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Transporte e Movimentação de Cargas Pesadas e Excepcionais.
Um dos componentes da tarifa do pedágio está relacionado ao risco do negócio. Segundo Dominici, o Brasil sofre um grave problema com a falta de confiabilidade dos contratos. A concessionária pode achar que não vai receber ou que o contrato não será cumprido como foi acordado. Então, coloca na tarifa o risco que está correndo. ?Este é um dos fatores que encarece o pedágio?, indica.
Outro motivo, indica, é a necessidades das concessionárias repassarem parte da arrecadação para o governo que realizou a concessão. Esses recursos repassados aos estados são usados para a manutenção de outras rodovias, no caso de São Paulo. No Paraná, segundo a Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), o dinheiro vai para o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), que utiliza os recursos na fiscalização do serviço.
Impostos
Apesar dessas discussões, um ponto é unânime entre aqueles que lidam diariamente com as rodovias pedagiadas. A situação seria bem diferente se os governos não cobrassem alguns impostos que deveriam ser destinados à conservação das rodovias. Na prática, acaba se pagando duas vezes por uma coisa. Uma das iras das entidades de classe é a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que incide sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados. Quando o motorista abastece seu veículo no posto, ele paga a Cide no preço do combustível. Na lei que institui este imposto, está descrito que a Cide serviria para o ?pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás, e financiamento de programas de infra-estrutura de transportes?. Mas o dinheiro não é aplicado para tal fim.
?Não consigo entender como o Estado – seja governo federal ou estadual – deixa de fazer a manutenção das estradas e continua cobrando os impostos. Tem que cobrar a aplicação da Cide e de outros impostos para o que foram criados. Então, pare de arrecadar. Somente para recuperar as estradas federais seriam necessários hoje R$ 22 bilhões. E não queremos só recuperação. Precisamos de mais estradas também?, diz Flávio Benatti, da CNT, informando que se arrecada cerca de R$ 7,5 bilhões por ano somente com a Cide, criada em 2002. ?Os governos têm de tomar vergonha na cara. A população quer estrada. Está escrito na Constituição: todo dinheiro arrecadado tem que ser destinado para o que foi criado. E não é isso o que está acontecendo?, conclui Walmor Weiss.
Intervenção do governo preocupa
Foto: Fábio Alexandre |
Trecho da BR-376 será licitado. |
No início deste ano, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, cogitou a possibilidade de o governo federal criar uma empresa para administrar o pedágio em trechos de rodovias federais que inicialmente seriam repassados para a iniciativa privada. A medida não se concretizou, mas causou muito alarde. O governo do Paraná anunciou que pode se habilitar a participar das licitações para esses mesmos pedágios nas estradas federais que cortam o Estado.
Qualquer tipo de interferência nesse sentido por parte do poder público é questionado por Flávio Benatti, da CNT. ?Qualquer intervenção de governo é sempre preocupante. Temos assistido a mais questões políticas do que realmente interessa. As questões que lidam com a infra-estrutura precisam ser conduzidas por pessoas competentes e, não por ingerências políticas. Vejo o pedágio público com preocupação. Seria criada uma ?Pedagiobras? e a arrecadação a gente não saberia para onde estaria indo. Não é preciso pedágio público. É só aplicar a Cide. Um pedágio público é voltar para trás?, opina.
Ele cita o exemplo da Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Antigamente, havia um pedágio público no trecho. A tarifa era cobrada, mas não se via os benefícios na estrada. Hoje, a Dutra está sob responsabilidade de uma concessionária. De acordo com Benatti, a via está com um grau de qualidade e segurança infinitamente superior ao que era antes. ?Acredito que um pedágio público seja um retrocesso. Existem duas alternativas. Ou se resolve o problema de infra-estrutura com os recursos já previstos em orçamento ou continua passando as estradas para as concessões privadas, mas é preciso discutir as tarifas do pedágio. Mas não dá, jamais, que a administração seja feita pelo próprio governo, que tem que estar fora deste tipo de atividade. Fora a dificuldade normal dos governos com a burocratização dos processos?, classifica João Batista Dominici, do Sindicato Nacional das Empresas de Transporte e Movimentação de Cargas Pesadas e Excepcionais.
Especialista critica qualidade da infra-estrutura
A forma com que as concessionárias mantém as rodovias sob as suas responsabilidades também é muito discutida. O professor de Planejamento de Transportes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Garrone Reck, afirma que a qualidade da infra-estrutura administrada pelas concessionárias não está dentro dos padrões técnicos. De acordo com ele, em muitos trechos de estradas, as empresas somente fizeram a cobertura dos buracos e pintaram as faixas de sinalização. Reck cita o índice de rugosidade como exemplo de item não cumprido. Em diversos trechos, o índice não é respeitado. ?O que as estradas apresentam não corresponde ao que se paga. A manutenção feita é aquele arroz com feijão?, avalia.
O professor acredita que o pedágio pode ser considerado caro porque as concessionárias fazem praticamente a manutenção dos trechos. Não há investimentos em construção de novas rodovias. ?Se fossem novas, aí se pagaria o investimento, se justificaria a tarifa. Lógico que as estradas estão melhores do que antes, quando faltou zelo por parte dos governos anteriores. Mas a comparação é feita apenas com as estradas super esburacadas. Quem vê apenas uma pavimentação mais bonita, acha que a estrada está perfeita e não é bem assim?, comenta Reck.
De acordo com ele, toda população paga o investimento e o lucro dos pedágios. Mas não é todo mundo que usa a infra-estrutura. Com isso, o professor defende que o custo de manutenção das rodovias deveria incidir mais sobre quem realmente utiliza. ?Se os pedágios fossem só de manutenção, seriam mais baratos, com contratos mais curtos. Cobriria o desgaste causado pelos usuários apenas. O investimento de novos trechos ficaria sob responsabilidade dos governos. No pedágio, está embutido o valor de obras que serão realizadas até o final da concessão. Como pagar um investimento que só vai beneficiar a próxima geração? Você tem que pagar à vista por uma coisa que vai acontecer daqui a, pelo menos, 15 anos. Isto não é correto e este tipo de contrato é lesivo. E ainda corremos o risco de que, quando vencer a concessão, as empresas alegarem que não tiveram o movimento prometido pelo governo. E aí o contrato vai se estender por mais vinte anos para cobrir?, fala Reck.
Ex-ministro questiona o modelo vigente
Lígia Martoni
O ex-ministro dos Transportes Cloraldino Severo esteve em Curitiba no final de janeiro para discutir as atuais concessões de rodovias adotadas pelo País e como o cidadão deve atuar para mudar uma realidade que ele considera ?absurda?. Atualmente consultor no Rio Grande do Sul, Severo questiona os moldes como o pedágio funciona no Brasil, o papel do governo na fiscalização dos gastos e rendimentos e as reais garantias apresentadas ao consumidor. Mais: compara o sistema que impera nas rodovias nacionais a exemplos europeus e norte-americanos e atesta ser possível com menos arrecadação executar as obras de que o País tanto necessita.
A perda do controle governamental sobre a atuação das concessionárias, segundo Severo, é mais um dos resultados angariados com a desregulamentação e perda do poder do Estado viabilizados pela globalização. ?O ajuste econômico foi imposto pelo exterior e houve o aniquilamento da estrutura administrativa do País?, lembra. O Ministério da Fazenda e o Banco Central, aponta o ex-ministro, lavaram as mãos. O resultado foram as privatizações sem controle político e social. ?Quero deixar claro que não sou contra as privatizações, mas sim quando é feita dessa forma abusiva, que passa por cima de tudo e de todos?. Ele explica: ?Antes o Brasil reclamava do excesso de rodovias, que foram feitas com recursos do Estado. Por isso, não venha me dizer que é impossível para o governo fazer as coisas?.
O ex-ministro cita que as empresas vêm apresentando aumento do custo operacional, ultrapassando a margem prevista em contrato. ?Hoje, esse custo chega a 24% da arrecadação, enquanto o lucro é de 41%. Mas o pior é saber que o que interessa a nós, ou seja, o que retorna à rodovia com investimento e conservação, não ultrapassa um terço do que pagamos?, calcula. O excesso de rodovias pedagiadas, acrescenta, colabora com a conta. ?A rede pedagiada é de 9,5 mil quilômetros, ou 5,6% das estradas pavimentadas brasileiras. Na Europa, esta percentagem é de 0,4% e, nos EUA, de 0,2%?.
Outra diferença: de acordo com o ex-ministro, lá o pedágio é usado de forma limitada, somente em auto-estradas e, em 2/3 dos casos, são concessões de empresas públicas. ?Enquanto isso, no Rio de Janeiro, depois que saírem as licitações prometidas, será 21% da rede pedagiada; no Rio Grande do Sul, 22% e em São Paulo, 14%. O Paraná alcançará 12%?.
Leia amanhã: concessionárias do Paraná alegam que só agora começam a ter lucro.