Jackson: fazendo graça.

E a primavera está chegando… Basta um rápido olhar pela cidade e as flores denunciam a nova estação que irromperá à 1h54 da madrugada de amanhã. Por todos os cantos, os bem cuidados jardins das casas de Curitiba proliferam em cores e aromas. E no centro, entre prédios sisudos e avenidas movimentadas, a Rua das Flores tinge de coloridos tons o trajeto de milhares de pessoas, anunciando que é hora de respirar mais fundo, de olhar mais atentamente os canteiros e observar o reflexo deles no rosto de cada cidadão.

Mais do que flores, o calçadão da XV, como também é chamada a rua mais famosa da capital, abriga um sem número de personagens que disputam a atenção dos passantes com brincadeiras, músicas, histórias… Acima de tudo, muitas histórias. Acomodados na marquises ou simplesmente ocupando toda a calçada com seus malabarismos, os artistas de rua se entregam como verdadeiros presentes ao público e deliciam o olhar, como se fossem buquês.

Não é difícil aproveitar este presente cotidiano que o primaveril calçadão oferece. É só caminhar um pouco mais devagar, dedicar alguns minutos de atenção às figuras que ali se encontram. Mesmo àquelas imóveis, como se fossem estátuas. Aliás, o espetáculo das estátuas vivas chega a ser comovente, assim como o som tirado da flauta pelo artista que não tem as duas pernas ou os acordes do melodioso bandoneon, executado com primor pelo músico de 78 anos de idade.

Pintores, escultores, palhaços, vendedores de bilhetes de loteria, pipoqueiros, seguranças das lojas, todos vão ocupando os espaços metro a metro e formando o mosaico da Rua das Flores.

Estátuas vivas fazem perfromance

Mara Cornelsen

Por alguns trocados qualquer cidadão pode fazer a estátua viva se movimentar, vê-la jogar um beijo de agradecimento e ainda ganhar um cumprimento. É assim que sobrevive o artista catarinense Antônio Clodoaldo dos Santos, de 36 anos, que há 4 anos instalou-se no calçadão, em frente ao relógio digital, e ali apresenta sua performance.

Sempre tarde, durante quatro ou cinco horas, envolto em panos brancos ou pintado de dourado, segurando o Oscar, ele encanta crianças e adultos com movimentos robóticos, sincronizados. Não é raro algum menos atento levar um susto, surpreendido pelo inesperado movimento. É espetáculo duplo, pois a platéia se diverte com a apresentação do artista e ri do desavisado transeunte. No muito adiante, na esquina com a Travessa Oliveira Belo, outra estátua viva dá seu show. O gaúcho Paulo César Klug, 25, exibe seu dourado homem da selva, que estranhamente empunha uma espada. A mesma com que ele ameaçou o candidato José Serra, durante um recente passeio do presidenciável pela Rua das Flores.

“Sombra?? irrita, mas também faz rir

Mara Cornelsen

Rir não é problema. Quem por acaso não gostar da exibição da estátua, certamente não vai deixar de se divertir com os já conhecidos “sombras” que perseguem as pessoas, imitando seus movimentos. Alguns dos imitados se irritam, mas a platéia que se acomoda nas mesas do cachorro-quente não se constrange e dá muitas risadas. E aplaude também…

Jackson Baeza, 28, ator profissional ? que diz também fazer teatro e cinema ? rouba a cena. Imita, apita, canta, dança, corre atrás e às vezes leva também um corridão. Há 12 anos ele executa suas graças na Rua das Flores e isso o fez conhecer a “personalidade” do povo curitibano. “Em dias cinzas, as pessoas passam por aqui com a cara amarrada, mas nas tarde de sol todo mundo sorri. Sábado é dia do pessoal passear com a família e o domingo é quando passeiam os namorados”, diz. Os aposentados, outras figuras típicas do calçadão, ocupam os bancos próximos e, entre conversas sobre política e doenças, lançam olhares de cumplicidade ao palhaço e sorriem discretamente.

Oil Man ganha notoriedade

Mara Cornelsen

Com um pouco de sorte, o transeunte pode deparar com Nelson Rebelo, 41, o “Oil Man”, outra figura típica da capital. Lambuzado com óleo bronzeador, ele passa devagar pelo calçadão para ver e ser visto. Nelson ganhou notoriedade há alguns anos, quando passou a pedalar pelas ruas de Curitiba usando apenas uma sunga e tênis. Causou frisson nas menininhas e revolta nos marmanjos. Chegou até a dar entrevista a Jô Soares, onde revelou ser imitador de Elvis Presley. No embalo da fama, gravou um CD com cinco músicas do ídolo, mas encontra dificuldades para vendê-lo. “Não tenho tempo para comercializar o meu CD. Preciso da ajuda de alguém para fazer isso”, afirmou. Se alguém quiser ajudar Oil Man em sua empreitada, é só ligar para a casa dele, no telefone (41) 357-2332. Dizendo que agora o “povo” já se acostumou com a sua presença, o oleoso personagem adora passear pela XV, porque, segundo ele, a rua tem ares de praia e de alegria.

Exemplos de superação

Mara Cornelsen

Outra figura ilustre encontrada todos os dias no calçadão é o palhaço Chameguinho (Carlos Roberto Telles, 25), ex-menino de rua que se voltou para arte. Ele também faz shows e diz que anima “até velórios” se for preciso. Já chegou inclusive a ser contratado para entrar em uma igreja levando a noiva pelo braço, para surpresa dos convidados para o casamento. E é pelo braço de Chameguinho que muita gente é levada ao flautista Adriel Lima Vieira, 29. Sem as duas pernas ? ele as teve amputadas ao ser atropelado por um trem, há 17 anos ? o rapaz costuma ficar sob a marquise da loja Quinta Avenida. Tocando três diferentes tipos de flauta, passa o dia juntando trocados para se sustentar. “Antes eu pedia esmola, mas um dia ganhei a primeira flauta, aprendi a tocar por conta própria e passei a ganhar a vida como músico”, diz, exibindo um sorriso de vencedor.

Seguindo o roteiro dos artistas

Mara Cornelsen

Saindo do “fervo” da Boca Maldita, o pedaço mais badalado da Rua das Flores, ponto de encontro de políticos e bebedores de café, é possível admirar quadros pintados por artistas do litoral, expostos a céu aberto, ouvir boa música tocada no violão pelo gringo Fernán, que aproveita o espaço para vender seus CDs, e até observar o trabalho do desenhista Marcos Barreto, 28. Há cinco anos ele trabalha na rua, fazendo desenhos com grafite a partir de fotografias ou de modelos vivos. A dentista Gracia Maria Orejuela não ser intimidou diante da curiosidade das pessoas e parou para posar e levar seu retrato ? feito com traços rápidos e precisos ?, para o consultório que tem em Campina Grande do Sul. Por R$ 30,00 ela perpetuou sua imagem no papel. Ainda em um caminhar desdenhoso, aproveitando a Primavera, atravessa-se a Marechal Floriano, dribla-se os pombinhos que brigam por pipocas caídas no chão, e, observando a fachada dos edifícios antigos, pode-se seguir rumo à Universidade Federal do Paraná, cujo histórico prédio marca o fim do calçadão.

Clima nostálgico no fim do passeio

Mara Cornelsen

No fim do passeio, quando não dá para deixar de notar ? e lamentar ? as recentes portas fechadas da Confeitaria Schaffer, um dos pontos mais tradicionais da cidade que não sobreviveu as crises financeiras, ainda dá para dar uma paradinha no café da Livrarias Curitiba e observar retratos antigos pendurados nas paredes. O clima nostálgico é completado pela música lamuriosa que sai do bandoneon tocado em plena rua pelo gaúcho José Antônio Shultz, de 78 anos. Feliz, ele revela que a rua é sua sala de visitas e que tocar para o povo é sua alegria de viver. Quando moço ele participou de um conjunto musical, em Farroupilha (RS), onde nasceu. Depois de adulto, teve que trabalhar com o pai nos negócios da família. Agora só faz o que gosta e se diverte enquanto diverte os outros. E também vende seus CDs e anuncia shows que podem ser contratados pelo fone (41) 232-9781. “É só falar com o Zé do Bandeoneon”, diz, lembrando de seu apelido. E para que o sonho de Primavera não termine, ainda se pode comprar um bilhete de loteria da mulher que grita “Olha a cobra!” e pensar em ficar rico para passar o resto da vida ouvindo histórias e caminhando sobre flores.

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