continua após a publicidade

Em apenas dois anos, Ademir Cardoso aprendeu a andar de ônibus, gerenciar a conta bancária, voltou a estudar e até encontrou uma namorada. Você pode estar se perguntando qual a relevância dessas informações. É que Ademir tem 41 anos, dos quais 15 passou internado em um hospital psiquiátrico, onde era considerado uma pessoa totalmente incapaz. A história de Ademir é semelhante a de milhares de pessoas que estão tendo a oportunidade de participar de ações previstas na reforma psiquiátrica brasileira.

Recuperação alternativa pode
ser em chácaras como essa,
na região de Curitiba.

Entre os principais pontos da reforma está a desospitalização dos pacientes, muitos dos quais, passaram a vida toda asilados. Em contrapartida, a iniciativa preconiza a criação de uma rede de trabalhos substitutivos, que prevê o atendimento dos pacientes em hospitais gerais, continuidade do tratamento em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), criação lares abrigados ou casas terapêuticas, e centros de convivência e cooperativas. Apesar dessa revolução na área psiquiátrica apresentar resultados surpreendentes, existem profissionais que ainda continuam reticentes em aceitar as mudanças. Prova disso foi a negativa de alguns psiquiatras de Curitiba em dar entrevista sobre o assunto, muitos dos quais ligados a hospitais psiquiatras.

Mas essa não é a postura do psiquiatra Paulo Amarante, que é doutor em Saúde Pública e coordenador do Laboratório de Saúde Metal da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que desde a década de 70 vem lutando contra as práticas adotadas no tratamento de transtornos mentais no País. Fundador do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, Amarante disse que ficou impressionado com os horrores que encontrou dentro dos hospitais. "Eram iguais a campos de concentração. As pessoas ficavam nuas, não tinham medicamentos e estavam privadas de qualquer contato com a sociedade. Me revoltei contra aquilo e fui chamado de subversivo", contou. A partir desse momento, o médico começou a se dedicar para mudar esse sistema. A revolução começou com denúncias e a edição de diversas livros que viraram referência na área, como Psiquiatria sem Hospício e Loucos pela Vida.

continua após a publicidade

A discussão da reforma psiquiátrica começou há trinta anos, mas as mudanças começaram a acontecer a partir de 2001, com a Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Segundo Paulo Amarente, através dessas políticas já se conseguiu fechar 30 mil leitos psiquiátricos. Ainda existem outros 50 mil leitos sendo utilizados. Ele destaca que esses leitos estão sendo substituídos por ações previstas na lei, e que vem transformando a vida de muitas pessoas.

continua após a publicidade

Caps ajudam a mudar o contexto do tratamento

Com a desospitalização dos pacientes, a reforma psiquiátrica prevê a criação de mecanismos substitutivos de atendimento. Os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) são espaços que oferecem atendimento clínico, bem como atividades sociais e profissionalizantes, que ajudam a mudar o contexto do tratamento.

A coordenadora de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Curitiba, Cristiane Honorio Venetikides, destaca que os Caps são unidades de referência e contam com uma equipe multiprofissional, onde os pacientes podem buscar apoio com vistas a reinserção social. A terapeuta ocupacional do Caps II Afetiva, que fica no bairro Boqueirão, Leila Garcia de Lima, explica que antes de ingressar em uma atividade, é feita uma busca de habilidades para ver qual atividade cada paciente se enquadra ou tem interesse. "Com isso é possível buscar uma profissionalização, para que eles possam ter uma ocupação e renda", comentou.

Um desses trabalhos é desenvolvido pela Associação Arte da Mente, que foca a montagem de peças em mosaico. No Caps são oferecidas ainda diversas oficinas, como de artesanato, alongamento e alfabetização, além de palestras e reuniões mensais sobre temas definidos pelos participantes. Eles também editam o jornal Afetivamente Saudável, que reúne matérias elaboradas pelos pacientes, e tem como patrocinadores os comerciantes do bairro. Ainda neste semestre, os grupos que participam de musicoterapia irão lançar o CD Louco de Bom. O trabalho, que reúne 12 composições, é resultado de quatro anos de atividades com cerca de 100 pacientes. (RO)

Residências terapêuticas surtem efeito esperado

O grande objetivo da reforma psiquiátrica é a reinserção dos pacientes à sociedade. Uma das iniciativas que vem dando excelentes resultados são a residências terapêuticas, que consistem em casas independentes que abrigam até oito ex-asilados. Os moradores recebem apoio de um cuidador e de um profissional de nível superior.

Ao todo, no Paraná já foram implantadas 13 residências terapêuticas. Uma delas fica em Campina Grande do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba, na chácara da Associação Padre Ceconello, que abriga pacientes do manicômio judiciário.

A coordenadora de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde, Cleuse Brandão Barleta, destaca que para cada pessoa é desenvolvido um plano individual para a retomada da autonomia, e trabalhado para que cada um possa definir seu futuro.

Emocionado, João Francisco Eis, de 66 anos, conta que já viajou sozinho duas vezes para Campo Mourão para visitar os filhos. Depois de passar 11 anos internado, sonha com o dia que poderá voltar a morar com a família. "Eles estão fazendo um quarto para mim", diz, acrescentado que sair o hospital foi uma das melhores coisas que lhe aconteceu na vida. Para Élcio Gomes da Silva – que faz questão de contar que passou 13 anos, três meses e três dias em um hospital psiquiátrico -, a palavra que melhor define a sua vida hoje é liberdade. "Eu não tinha nem documentos, e fui fazer todos sozinho. Hoje sei meu nome completo e tenho a liberdade para tomar minhas decisões", falou. (RO)

Comunidade precisa saber detalhes do projeto

"Ainda falta conhecimento da comunidade sobre o que são os trabalhos substitutivos. Eles acham que é fechar hospitais e soltar todo mundo". A afirmação é do escritor e integrante do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, Austragésilo Carrano – autor do livro Conto dos Malditos, no qual foi inspirado o filme O Bicho de 7 Cabeças. Para ele, a criação da lei da reforma psiquiátrica foi um grande avanço, porém ainda existem ingerências nos recursos e falta de vontade para aplicar o que prevê a legislação.

Para o escritor não há uma interação entre os profissionais envolvidos na implantação da ações nos estados, o que provoca uma grande discrepância no País. Segundo ele, a rede de trabalhos substitutivos está bastante avançada em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. "Aqui no Paraná ainda falta muito coisa para ser feita", disse, criticando que não é só montar Caps, sem reciclar os profissionais que vão atuar nesses locais. Ou ainda, montar residências terapêuticas longe da comunidade, onde os pacientes continuarão confinados.

E para tentar sensibilizar o governo do Paraná a implantar a reforma de maneira ampla no Estado, Carrano fará amanhã o relançamento do seu livro em Curitiba. Será às 19h, no Bar Roxinho (Rua Marechal Floriano, 1285). Carrano irá reunir personagens do livro, além de promover performances teatrais e recolher assinaturas em um abaixo-assinado que deverá ser entregue ao governador Roberto Requião. (RO)

Pressões podem causar problemas mentais

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 12% da população mundial vai precisar, em algum momento da vida, de cuidados em saúde mental. Apesar de ser crítico em relação a esses números, o psiquiatra Paulo Amarente diz que muitos problemas estão sendo criados pela pressão que as pessoas são submetidas.

"Nós vivemos em um mundo que agilizou rapidamente. Hoje não conseguimos ficar um dia sem abrir os e-mails. Em Brasília, por exemplo, existem mais celulares do que habitantes. E essa pressão de não conseguir vencer os compromissos é que resulta nas depressões e outros problemas", comentou. Para ele, também é preciso mudar a visão dos profissionais de saúde, que estão tratando o problema de forma individual.

O diretor-geral e administrativo do Hospital Nossa Senhora da Luz, Dagoberto Hungria Requião, também defende uma mudança de postura por parte da classe médica. "A doença mental, em relação a outras especialidades, é estigmatizada", falou. Ele também acredita que assim como a cultura errada do tratamento de saúde mental demorou tanto tempo para mudar, precisaremos de um tempo para conquistarmos uma transformação dessa visão. Requião considera que o modelo asilar de tratamento que foi praticado até pouco tempo é inaceitável, mas para que ocorram as mudanças da reforma psiquiátrica é preciso criar todas as estruturas para o atendimento dessa clientela. (RO)