?O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?? Essa é a pergunta que todos os eleitores brasileiros terão de responder no próximo domingo, no referendo sobre o comércio de armas no País. Prevista no Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2003, a consulta popular foi pouco usada na história do Brasil. O referendo passou a ser considerado um mecanismo de confirmação de uma lei depois da Constituição de 1988. Antes, somente um referendo foi realizado, em 1963, para confirmar a adoção do parlamentarismo como forma de governo, antes do golpe militar, sem estar incluso na Constituição da época.
Neste ano, em meio a discussões ideológicas e suspeitas de manipulação de pesquisas e métodos de abordagem, a população tem que formular sua opinião rapidamente sobre o assunto. A propaganda gratuita nas emissoras de rádio e TV começou há menos de um mês para o referendo. Correntes contrárias e favoráveis à proibição do comércio de armas e munição admitem que o tempo dado para as pessoas conhecerem as razões de cada lado não foi suficiente para que a maioria vote consciente. ?A população não está devidamente esclarecida. Muitos irão votar erroneamente. A campanha de esclarecimento foi tardia e não muito adequada. Apesar do pouco tempo, a mídia ainda poderá orientar melhor?, avalia o desembargador João Kopytowski, contrário à proibição do comércio de armas.
O advogado e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Paraná, Wagner Rocha D?Angelis, é a favor da proibição. Para ele, a população pode se confundir no momento da votação porque houve falta de debate. ?A propaganda sobre o referendo deveria começar três meses antes da votação. O atraso vai causar equívocos, pelo menos nas classes menos elitizadas. A população brasileira não está devidamente preparada em curto prazo para o debate, que se restringiu à classe média e à elite?, opina.
Mesmo assim, é possível notar que as pessoas estão discutindo sobre o assunto, seja em casa, no trabalho e até mesmo nos bares. Isso aumentou depois do início da propaganda gratuita, quando houve maior acesso à informação, segundo o presidente da Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa, contrária à proibição, deputado federal Alberto Fraga (PFL-DF). ?A informação tem aumentado a discussão e as pessoas estão começando a formar um pensamento. Isso tem mudado as pesquisas de opinião?, comenta.
Com ou sem tempo hábil, com opinião formada ou não, os brasileiros vão às urnas para decidir o que fazer com o comércio de armas no País. É a primeira vez que a população vai decidir sobre uma lei, situação tão importante quanto uma eleição. ?O referendo serve de reflexão. Outros temas também deveriam estar sendo colocados para os cidadãos decidirem?, esclarece D?Angelis.
Mas há quem não concorde com a realização do referendo, especialmente nesse momento da vida política do Brasil. ?Julgo o referendo desnecessário, inútil e enganoso, porque o próprio Estatuto do Desarmamento poderia proibir o comércio. Já restringiu o porte, que ficou bem mais severo. Hoje, para adquirir uma arma, tem que comprovar a necessidade e bons antecedentes, além de passar por treinamentos?, frisa o desembargador João Kopytowski. ?O referendo está gastando muito, quase R$ 600 milhões. Com esse dinheiro, dava para construir 40 penitenciárias, uma necessidade inegavelmente maior, ou ainda ampliar a estrutura policial. Se realmente houvesse necessidade do referendo, poderia ser votado nas eleições do ano que vem?, declara.
Por que votar pelo não?
As pessoas contrárias à proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil devem apertar a tecla 1, do ?não?, nas urnas eletrônicas. O desembargador João Kopytowski diz que a população de bem tem direito de defender a vida, a propriedade e a família. ?Sou radicalmente contra porque o referendo tem como pretexto o desarmamento, o que não é verdade. Se proibir o comércio, estará atingindo o povo bom, que trabalha e não comete crime. Por outro lado, os bandidos não vão comprar armas legalmente?, revela.
Conforme o desembargador, haverá um aumento na facilidade da ação criminosa se o comércio for proibido, porque os bandidos encontrarão uma população desarmada e desprotegida. ?Para o verdadeiro desarmamento, o dos criminosos, seria necessário desencadear blitze em todo o território nacional, usando as Forças Armadas e todas as organizações policiais?, afirma.
Kopytowski ressalta que a argumentação de que os bandidos quase sempre usam a surpresa em suas ações, impedindo que o cidadão pegue sua arma a tempo, não deve ser considerada como absoluta. Em um confronto, a pessoa pode escolher entre reagir e se entregar. ?É uma questão de reação pessoal e até de sorte. Essa proibição não vai reduzir a violência, que deve ser enfrentada por outros meios. Entre eles, o Poder Judiciário, que tem poucos juízes, auxiliares e dispositivos modernos, e o sistema penitenciário. Pela grande falta de vagas, as penas estão cada vez mais brandas e alternativas, gerando impunidade?, acredita. (JC)
Por que votar pelo sim?
Quem é a favor da proibição do comércio de armas e munição deverá apertar a tecla 2, referente ao ?sim?, na urna eletrônica. O advogado Wagner D?Angelis acredita que a proibição vai reduzir o universo de armamento disponível para a população, restringindo também parte das armas que param nas mãos dos bandidos. ?Está provado estatisticamente que mais de um terço das armas dos criminosos vieram da legalidade. Foram furtadas, roubadas e até negociadas após serem compradas legalmente. O comércio aberto e franco contribui para isso?, afirma.
De acordo com ele, 20% dos homicídios dolosos ocorridos no Brasil são originados por causas eventuais. ?Não foram praticados por bandidos, mas por cidadãos comuns. Esses casos, baseados em fortes emoções, possivelmente não teriam ocorrido se não houvesse uma arma presente no momento. A grande disponibilidade e o fácil acesso provocam um aumento significativo de acidentes graves e letais com armas de fogo?, afirma D?Angelis.
Ele ainda destaca o falso sentimento de segurança como motivo para votar ?sim? no referendo. ?A pessoa se sente mais poderosa quando tem uma arma. O cidadão comum, mesmo treinado, sempre vai estar em desvantagem em relação ao delinqüente, habituado com a violência e que não tem nada a perder. O bandido tem uma ação mais violenta diante da pessoa que tenta reagir com uma arma do que aquela que não reage?, conta D?Angelis. ?Isso está previsto no programa Cultura para a Paz, da Organização das Nações Unidas (ONU)?, completa. (JC)
Últimos esforços antes do domingo decisivo
Diogo Dreyer
Na reta final para o referendo, defensores das duas tendências aproveitaram o dia de ontem e utilizaram a tradicional Boca Maldita, em Curitiba, para tentar convencer os eleitores indecisos sobre seus argumentos contra ou a favor. E se a última pesquisa do Ibope mostra um empate técnico entre o sim e o não, na hora de dividir o mesmo espaço, ambos os lados mostraram tolerância e se ativeram apenas ao discurso, mesmo quando uma passeata organizada pelo Comitê Brasil Sem Armas e composta em sua maioria por estudantes de escolas da periferia de Curitiba passou pela concentração da Frente pelo Direito da Legítima Defesa, que distribuía panfletos no local.
A passeata pelo sim, que reuniu cerca de 200 pessoas, saiu da Praça Santos Andrade e seguiu a pé até a Boca Maldita. Segundo Paulo Pedron, presidente do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (Iddeha), a manifestação não tinha objetivo de provocar o outro lado, e mas, sim, levantar uma questão interessante para o debate, de que os jovens da periferia são as maiores vítimas de armas de fogo no País. ?São esses alunos de 14 a 24 anos que mais morrem por causa das armas. Nenhum dos teóricos dos dois lados sabe quem são eles, e muito menos falam deles?, aponta. Seriam esses jovens, em sua opinião, que mais sairiam ganhando com uma vitória do sim, e não as classes mais ricas, que teriam comprado a discussão e colocado na ótica da defesa pessoal.
Para o bispo auxiliar de Curitiba, dom Ladislau Biernarski, a campanha pelo desarmamento não acaba no plebiscito, mas seria uma educação permanente da sociedade. ?É preciso não apenas tirar as armas de circulação, mas principalmente desarmar o espírito?, diz.
Outro lado
O representante comercial Celso Bassani, que faz campanha pelo não, diz não se incomodar com a manifestação do outro lado, e já conta até como certa a vitória nas urnas. ?Até o outro domingo vamos fazer passeatas, colar adesivos e conscientizar as pessoas. Mas já estamos preparando a carreata da vitória?, provoca. Para ele, que pratica tiro, ter arma não se trata de fazer justiça com as próprias mãos, mas ter poder de se defender contra a criminalidade. ?O Estado não cumpre seu papel e agora quer impedir o homem de bem de se defender?, acredita.
Para o presidente do Conselho de Segurança do Água Verde, José Gil, a campanha pelo não ganhou força nas últimas semanas porque os simpatizantes se entregaram gratuitamente à campanha, e porque eles acreditam realmente nesse direito. ?Somos acusados de sermos sustentados pela bancada da bala, mas vimos a adesão crescer por estarmos aqui colocando dinheiro do nosso próprio bolso?, revela.
Aumento na procura e compra de armas
O referendo tem atingindo diretamente as lojas especializadas. A procura aumentou tanto nas últimas semanas, que alguns estabelecimentos já estão sem estoque. Houve também um acréscimo nos pedidos de porte e registro de armas.
O proprietário de loja Pau de Fogo, um dos três estabelecimentos deste ramo existentes em Curitiba, Márcio José Trigo, confirma o aumento na procura e venda de armas, principalmente para policiais, nas duas últimas semanas. Nesse período, ele vendeu 50 armas, acabando com seu estoque. ?Muitos estão com medo do comércio ser proibido e não ter onde e o que comprar. Recebo mais de 20 ligações por dia de pessoas querendo comprar armas. Já encaminhei muitos pedidos nos últimos 15 dias, pois antes os interessados precisam passar por testes específicos. Só depois a Polícia Federal me comunica autorizando a venda para a pessoa?, explica. (JC)