O desaparecimento da paranaense Carla Vicentini durante um intercâmbio nos Estados Unidos traz à tona a discussão sobre as vantagens e os cuidados que se deve ter ao deixar o País rumo a um lugar desconhecido. Todos os anos, milhares de jovens brasileiros saem para diversas partes do mundo, a maior parte deles para os EUA, assim como Carla, em busca de uma experiência internacional, do aprendizado de uma língua diferente e do conhecimento de uma cultura que, espera-se, seja proveitoso tanto para o desenvolvimento pessoal como profissional. Se essas são as qualidades citadas por quem já passou pela experiência do intercâmbio, não se deve deixar de lado, porém, os cuidados e até mesmo os perigos em sair de casa para viver em outro país, ainda que por pouco tempo.
Quem opta pela experiência geralmente é orientado antes de embarcar. ?Tem todo um preparo de pré-embarque durante seis meses, com reuniões de orientação. A gente prepara o intercambista para tudo que ele pode enfrentar num país estrangeiro, desde problemas pequenos até outros mais sérios, como a perda de um documento ou uma mala extraviada, até um acidente de carro ou assaltos. Mas não é nada que não possa acontecer no Brasil também?, explica André Vieira, consultor educacional da empresa especializada em intercâmbios World Study. Ele conta que, seis meses antes do embarque, o estudante começa a receber informações sobre o local onde ficará apenas alguns meses ou até por um ano. O primeiro encontro é de orientação psicológica e trata de problemas como o choque cultural. ?Quando você vai para lá, percebe que não é moleza, enfrenta saudade de casa, frio, cidades pequenas, convívio com uma cultura diferente, e tudo isso pode ser um choque.?
Depois, quem recebe o alerta são os pais. ?Avisamos que o filho deve ter maturidade, responsabilidade, saber encarar problemas por conta própria, ser pró-ativo?, cita. A próxima etapa, então, é entender um pouco sobre o dia-a-dia em um país diferente, como o perfil do povo em que o brasileiro vai se infiltrar e costumes estranhos. ?Tratamos de legislação e peculiaridades da cultura. Nos EUA, por exemplo, eles aprendem que menor de 21 anos não pode sair à noite, não pode beber. E tem brasileiro que quer burlar o sistema e procura problemas. Outra questão refere-se ao assédio sexual, que é levado muito a sério. Um beijo no rosto ou uma brincadeira podem gerar processos ou até dar prisão?, indica. Beber em locais abertos, como se faz no Brasil, ou dirigir com uma garrafa de cerveja aberta no carro, ainda que ninguém tenha bebido, também é problema na certa.
De acordo com André Vieira, que também é ex-intercambista, vale para qualquer pessoa tomar o dobro do cuidado ao deixar o País. ?A ingenuidade do brasileiro muitas vezes pode levá-lo a ter problemas. E se acontece alguma coisa lá fora, por ser estrangeiro, você pode ser a parte mais fraca?, alerta. O lado bom, em contrapartida, é que intercâmbio, além de conhecimento, acrescenta convivência e amizade. ?Os Estados Unidos são um País relativamente seguro, o número de crimes é muito menor que no Brasil. E os americanos, apesar de não se abrirem tanto com povos estrangeiros, se tornam grandes amigos quando conquistamos sua confiança?, classifica. E, nesse caso, bom senso é tudo. ?O parâmetro para o intercambista deve ser: não faça nada que você não faria no Brasil. E procure conhecer um pouco da cultura, dá tempo de ler bastante sobre o país e conhecer suas peculiaridades.?
Catarinense teve surpresa quando chegou nos EUA
A catarinense Milena Lickfeld fez intercâmbio para os Estados Unidos dentro do programa Au Pair, ou seja, trabalhando como babá. Inicialmente, ela iria cuidar de dois adolescentes de Chicago. ?Mas quando cheguei na casa, tudo mudou. Eu virei a empregada deles. Acordava às 6h e ia dormir quando eles me liberavam. Nem fazer as refeições com eles eu podia?, lembra. A solução foi mudar de família e de cidade. Ela foi, então, para o estado da Virgínia, para cuidar de um bebê: ?Dessa vez tudo deu super certo. Minha nova família era muito massa, um bebê fofo, uma mãe executiva e um pai doidão, que adorava cozinhar e contar piadas?.
Para Milena, o sonho do intercâmbio inclui ter os pés no chão, porque o trabalho é árduo. ?É ralação mesmo, era o dia inteiro cuidando do bebê como se fosse meu. É uma responsabilidade imensa… uma criança estranha nas mãos de uma babá brasileira! Tinha dias que eu desmaiava na cama, de tão cansada?, recorda. Responsabilidade que vale a pena, segundo ela. ?São obstáculos legais de superar porque a gente aprende a gostar de coisas novas, valoriza o que tinha em casa e não queria, valoriza o trabalho pesado, enfim… para mim, essa experiência me fez ser uma pessoa melhor, mais humana, mais família?, acredita.
A intercambista lembra de colegas que acabavam fazendo loucuras para conseguir fazer o que era proibido no país: ?A maioria não sabe que menor de 18 anos só entra em cinema. Então, começa uma série de frustrações. Elas se negam a fazer as coisas, falsificam documentos para poder entrar em boates, se envolvem com os homens de lá por carência, imaturidade. Isso faz com que algumas desistam do programa na metade do tempo previsto, arrumem um lugar para ficar e decidam morar lá ilegalmente?, afirma.
Para evitar isso, alerta, deve-se sair do Brasil com a consciência de que o povo americano é diferente. ?Quando viajei, estava com 25 anos, então não tive muitos choques culturais. Mas a cultura americana é muito diferente da nossa, eles são frios, impessoais, extremamente materialistas e perfeccionistas. O trabalho e o dinheiro são as coisas mais importantes?, descreve. ?O primeiro conselho que dou é não sair do Brasil enquanto não souber inglês. Os americanos não têm paciência de ensinar, eles não querem perder tempo. Mas o mais importante de tudo é: não dê bobeira. Você está num país diferente, com leis diferentes e, o mais importante, sozinho. É melhor não sair com estranhos e cuidar com promessas boas demais feitas por pessoas que não te conhecem.? (LM)
Quem vive clandestinamente não recebe assistência
Casos como o de Carla Vicentini muitas vezes acontecem em países estranhos, mas, via de regra, são muitas vezes solucionados porque envolvem a legalidade do estrangeiro. O problema é quando o fascínio pelas altas quantias ganhas ou a liberdade de estar longe de casa incutem no brasileiro o desejo de permanecer ilegalmente. Boa parte dos cerca de três milhões de brasileiros que hoje residem no exterior estão dessa forma, o que pode ser problema no caso da necessidade de assistência à saúde, por exemplo, ou, ainda, na hora de reivindicar seus direitos.
Nesses casos, a família de quem desaparece pode não contar com o mesmo empenho com que as autoridades americanas têm atuado para lidar com o caso de Carla. Esse foi um dos motivos que levou o brasileiro Stylianos Mandis Junior, de Santos (SP), a fundar a organização não governamental Desapareceu, que conta com dados sobre brasileiros desaparecidos em vários países do mundo. A idéia do presidente da ONG é divulgar por toda parte a situação dessas pessoas e também cobrar nas embaixadas e consulados a procura de alguns que há anos não mantêm contato com a família. ?Quando a família entra em contato comigo, ligo nos consulados. Cerca de 80 a 100 pessoas já foram achadas pelo site, mas acredito que esse número seja bem maior, em torno de 400, porque tem muita gente que não avisa quando encontra o familiar?, lamenta. A ONG só toma conhecimento, nesses casos, quando liga para verificar.
No site, as próprias famílias cadastram o desaparecido. Cada pessoa pode ser procurada pelo país onde desapareceu. Nos links, evidenciados por bandeiras, consta o número de brasileiros que sumiram em cada um deles, com nome e perfil completo. A postagem é gratuita e Stylianos mantém o site e a ONG com recursos próprios. ?A maior parte dessas pessoas simplesmente perde o contato. Resolvi fundar a Desapareceu porque me chegavam aqueles e-mails com fotos de crianças desaparecidas, eu sentia que isso tinha de ser espalhado, mas só havia um site brasileiro que divulgava, e ainda era preciso pagar para colocar as fotos?, conta. Dessa forma, ele resolveu expandir e incluir pessoas de todas as idades, desaparecidas pelo mundo todo. ?No Brasil, eu conto com a ajuda de pessoas que chamo de anjos. São anônimos espalhados por todo o País que ajudam a rastrear os desaparecidos. Em outros países, conto só com a ajuda dos consulados e embaixadas?, comenta.
O site da ONG, o www.desapareceu.com, já saiu do ar algumas vezes por falta de recursos e está prestes a sair novamente, a não ser que Stylianos consiga doações que mantenham o site no ar e a esperança de muitas famílias acesa. O número da agência no Banco do Brasil é o 0004-3, conta-corrente 54.153-2 (dados extraídos do próprio site). (LM)
Bem recebidos por uns, ignorados por outros
A estudante Michelle de Freitas, de Curitiba, decidiu fazer um intercâmbio para Estados Unidos e se instalar em uma cidade pequena do estado de Wisconsin. ?Todo mundo conhecia todo mundo, era bem família e isso ajudou bastante, nem esperava que a gente ia ser tão bem recebida por toda a cidade?, conta ela, que viajou com uma amiga, Maria Amélia. O primeiro desafio, no entanto, foi o clima. ?Era inverno quando chegamos e a temperatura chegou a menos 48 graus. A primeira coisa que a gente fez foi comprar roupas especiais?, recorda.
O primeiro emprego foi tranqüilo. Estava tudo certo com o empregador, a casa que acharam para morar era boa, tinham carro. O problema foi quando decidiram estender o intercâmbio e, a partir daí, tiveram de se virar. ?Saímos da casa, deixamos o carro e o trabalho e procuramos um novo emprego. Mas conseguimos. A gente foi atrás e botou a cara para quebrar. Estávamos acostumadas a ter a ajuda da família, e lá é só a gente mesmo?, comenta Michelle, que enfrentou uma situação que nunca imaginava acontecer com ela: teve de fazer uma cirurgia de emergência nos EUA. ?Comecei a ter dores fortes nas costas e chegou a um ponto que eu não conseguia mais trabalhar. Foi de imediato.? Não era grave, apenas um cisto, mas as fortes dores e a preocupação da família perturbaram a estudante. ?Achei que ia morrer, e lá, sozinha. Mas eles foram muito atenciosos comigo no hospital e deu tudo certo?, lembra. ?Mas tudo conta na experiência, cresci muito até pela dificuldade que passei. Além disso, nunca tinha trabalhado e lá tive seis empregos diferentes. Sempre vale a pena?, conclui.
Da mesma forma pensa o também curitibano Allan Sommer, que voltou do segundo intercâmbio para os EUA na semana passada. Para economizar, ele chegou a dividir um apartamento de dois quartos com oito intercambistas. ?A gente aprende a conviver. Lá, você acaba tendo contato no trabalho com gente rude, gente legal e gente que não se conforma de um estrangeiro estar tirando o dinheiro deles?, relata o brasileiro, que trabalhou como manobrista em um hotel cassino, chegando a tirar até U$ 600 por semana – cerca de R$ 1.270.
Mesmo assim, Allan dependeu bastante da boa vontade e da confiança dos americanos. ?Eu saía à noite do trabalho, quando não tinha mais ônibus, e precisava pedir carona. ?Perguntado se sentia medo, ele é enfático em responder: ?Perigo tem em todo lugar, seja lá, seja no Brasil. Mas, no geral, eles são bem policiados. A diferença é que a gente percebe que aqui qualquer coisa é mordomia, por isso, se virar por lá traz muito crescimento?, define. (LM)
