Até 2004 acreditava-se que o Paraná tivesse poucos quilombos, entre três ou quatro. No entanto, desde então já foram identificadas 86 comunidades tradicionais negras, sendo 36 já reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares. A maioria desses grupos está em lugares de difícil acesso e os próprios municípios não sabiam da existência deles. O que quer dizer que até hoje não receberam obras de infra-estrutura. Há lugares em que os moradores ainda vivem em casas de pau-a-pique, não há luz e água encanada. No entanto, ainda preservam parte de suas tradições.
Em 2005, o Estado criou o Grupo de Trabalho Clóvis Moura, que começou a fazer um levantamento das comunidades quilombolas no Paraná. O próprio presidente do grupo, Glauco Souza Lobo, disse que não tinha idéia da grande quantidade dessas comunidades. ?Estamos ainda visitando outras 17 comunidades negras, descobrindo o Paraná negro?, falou.
Ele explica que a maioria dessas comunidades se instalaram em lugares longínquos e inóspitos. Primeiro porque temiam voltar a ser escravos e também porque era a única terra que lhes fora dada. Devido a essa dificuldade de acesso, acabaram ficando invisíveis para o estado e não receberam qualquer tipo de melhoria.
Há comunidades bem antigas, com mais de 200 anos de existência como é o caso de Paiol de Telha, em Guarapuava, com mais de cem famílias. Só o grupo e mais outros dois eram conhecidos em 2004, Sutil, em Ponta Grossa, e João Surá, em Adrianópolis. Mas agora já se sabe da existência de outras 17 só no Vale do Ribeira.
Não sei ao certo quando os primeiros moradores chegaram e nem quantas famílias viviam aqui. Lauro Santana de Oliveira, 74 anos. |
Para a Prefeitura de Campo Largo, também foi uma surpresa encontrar uma comunidade quilombola. Palmital dos Pretos foi descoberto há dois anos, quase na divisa com Ponta Grossa. O acesso ao local é difícil, quase 90 quilômetros em estrada sem asfalto. Lá ainda há casas de pau-a-pique e de costaneira.
O pesquisador diz que a situação de miséria se repete em várias comunidades. Falta tudo: casas, água, luz e até escola. A maioria vive de pequenas plantações, trabalham como bóia-fria e vendem artesanato como cestos de bambu e panelas de barro. O governo está trabalhando para melhorar a vida desses grupos, alguns já receberam água, luz e escola e estão desenvolvendo hortas comunitárias. Também estão sendo construídas 800 casas.
O isolamento dificultou o desenvolvimento dessas comunidades. Mas por outro lado conseguiu preservar várias tradições, como o terço cantado e a recomendação das almas durante a quaresma. ?São práticas católicas em cima de memórias negras, que eles nem sabem a origem?, revelou Glauco. Outro aspecto da cultura africana ainda presente é a construção da cozinha do lado de fora. O professor explica que na África nada que estivesse morto costumava entrar nas casas. ?Eles não têm mais o motivo, mas ainda o fazem?, explicou.
Além disso, também usam ervas medicinais que teriam poderes mágicos, as garrafadas como o chamado ?amargoso?, que previne contra picada de cobras e fecha o corpo para outras moléstias. Muitos ainda contam as histórias do seus antepassados, mas boa parte deles não conhece a trajetória de seu povo. Um dos objetivos do Grupo de Trabalho é justamente provocar nas pessoas o reconhecimento da cultura local. Há grupos que já valorizam esse conhecimento, há uma menina de 13 anos numa das comunidades que começou a registrar todas as histórias contadas pela avó. Em Santa Cruz, em Ponta Grossa, ainda se faz a celebração de danças e cânticos originários da África.
Na Lapa vivem 150 famílias descendentes de escravos africanos
Na comunidade do Feixo, na Lapa, vivem cerca de 150 famílias descendentes de escravos africanos. Com o tempo, a tradição e a história foi se perdendo. No entanto, a religiosidade ainda é um fator marcante entre os moradores. Há casas onde existem mais de 50 quadros, folhetos e imagens de santos e religiosos. Dos povos africanos, restou ainda o gosto pela música e alegria de viver.
Um dos moradores mais antigos, Lauro Santana de Oliveira, 74 anos, diz que não sabe ao certo quando os primeiros moradores chegaram e nem quantas famílias viviam ali. Sabe apenas que seus avós já cultivavam aquela terra e na época o número de casas era bem pequeno. Diz que todos eram descendentes de escravos e ganharam pequenos lotes para cultivar. No entanto, até hoje a comunidade não tem a titulação da área.
Ele também não sabe explicar a origem do nome. Acredita que se deve ao fato de os moradores partirem as árvores em toras, que entrelaçadas serviam para cercar, ou seja, fechar o terreno.
Antônio Pedroso, 76 anos, também sabe contar pouca coisa sobre seus antepassados. Ele explica que, antigamente, os adultos não conversavam com as crianças, e quando chegava alguma visita eles tinham que ir para fora brincar. ?Não é como hoje que as crianças conversam de igual para igual com a gente?. No entanto, ele lembra de algumas tradições que seus pais e avós seguiam quando ele era criança. A religiosidade sempre foi muito forte.
Diz que costumavam sair nas noites de quarta e sexta-feira durante a quaresma para fazer a recomendação das almas. Eles iam de casa em casa rezando. Em cada lugar que paravam, uma cruz feita de galhos ou gravetos era feita de modo improvisado e deixada ali para marcar a passagem. ?Eles chegavam sempre quando a gente já estava quase dormindo. Podiam visitar três, seis, nove ou doze casas. Esses números nunca mudavam?, lembra.
A música sempre foi marcante para essa comunidade. Em várias casas é possível encontrar um instrumento musical. Seu Antônio, com bom humor, diz que não toca violão muito bem. ?O problema são as cordas que atrapalham?, explica. Quando era jovem costumava sair com amigos e ir cantar pelas estradas, parando em frente à casa de vizinhos. Hoje, ele e o neto animam as missas da comunidade. Antônio aparenta um bom estado de saúde e muita lucidez. Ele tem apenas um pouco de dificuldade para caminhar. ?Sofri um acidente. Fui tentar desmontar um carro?, conta, se valendo mais um pouco da capacidade de se alegrar diante das dificuldades da vida, como seus ancestrais.
Silvia Ferreira, 73 anos, mostra o quanto a religião é importante para as famílias que moram no lugar. Ela tem em casa mais de 50 imagens, folhetos e quadros de santos e pessoas religiosas. Todas as noites, quando vai dormir, costuma rezar e beijar todos as suas imagens. Ela aproveita para agradecer o dia que passou e pedir forças para enfrentar o próximo. Quando amanhece, o ritual se repete. Juvenal Pedroso, 82 anos, é marido de dona Silvia e conta que hoje as coisas estão mais fáceis, apesar de o trabalho na roça ainda ser pesado.