O mundo paralelo do trabalho infantil

Curitiba possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) considerado de primeiro mundo (0,856). Porém, nem todos os seus cerca de 1,7 milhão de habitantes se somam a essa estatística. Para muitos, a única Curitiba que conhecem é a da pobreza, que cria um mundo paralelo onde crianças e adolescentes são arrastados para o trabalho infantil, exploração sexual, violência e drogas. Numa conversa com conselheiros tutelares das oito regionais da cidade, é possível verificar que todos esses problemas existem e que eles abrem feridas profundas na vida de crianças e adolescentes, difíceis de serem curadas. Para elas, o futuro não existe.

Na cidade onde parece que a maioria das coisas funcionam bem, fica mais difícil notar as crianças e jovens que têm a infância e juventude roubadas pela exploração no trabalho e, pior ainda, pela exploração sexual. Na vida real, as histórias tristes jorram uma atrás da outra. Sempre muito parecidas: a pobreza é o pano de fundo que move todas elas. O que falar das mãos cortadas do menino de seis anos que não vai à escola e ganha R$ 5 por dia, para ajudar no orçamento familiar, numa grameira no bairro Umbará. Ou do menino, de 12 anos, que têm as mãos calejadas de tanto trabalhar com os pais na agricultura, no mesmo bairro. O cansaço físico atrapalha os estudos e ele já apresenta defasagem em relação a idade e à série que estuda.

Ou pior ainda, a história das irmãs que foram abusadas sexualmente pelo pai, saíram de casa e, na rua, foram obrigadas a se prostituir quando tinham apenas 12 e 13 anos de idade. Na cabeça delas não existe mais qualquer sonho ou esperança de uma vida melhor. Elas estão sendo atendidas por programas de rede de proteção de Curitiba, mas estão tão marcadas pelo sofrimento que sair dessa situação vem se revelando quase impossível e as fugas do abrigo são constantes.

Esses são apenas alguns dos casos relatados pela conselheira tutelar da região do Bairro Novo, Silvana Aparecida Bernardino de Morais, que afirma que o trabalho infantil e a exploração sexual existem: basta um olhar mais atento para a cidade.

Mas não é só isso. Na regional, o trabalho com o lixo reciclável também é um problema – acaba ocupando toda a família. As crianças não vão à escola ou quando vão estão cansadas demais para aprender. Depois de várias reprovações, abandonam a única chance de melhorar de vida. ?É comum a gente ver o pai trabalhando com o lixo reciclável e o filho também?, comenta Silvana.

Como em todos os conselhos tutelares de Curitiba, o do Bairro Novo não têm números para retratar essa realidade. Isto acontece porque a exploração sexual e o trabalho infantil não aparecem como itens do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia) -uma espécie de cadastro nacional criado para subsidiar a adoção de decisões governamentais sobre políticas para crianças e adolescentes -, que é preenchido sempre que cada unidade faz um atendimento. No fim das contas, esses casos acabam se diluindo em meio a outros tantos direitos violados. Seria necessário reformular o sistema para retratar mais fielmente a realidade. Além disso, há casos de conselheiros que não conseguem lidar com o sistema por ser complexo demais, gerando mais falhas de dados.

Preocupação também com a exploração sexual

Na regional do Boqueirão, a conselheira tutelar, Liliane Santana da Silva, explica que a exploração sexual também existe. Segundo ela, a Rua Anne Frank, paralela à Marechal Floriano Peixoto, que liga o bairro ao Centro, é considerada ponto para as adolescentes. Mas a abordagem torna-se difícil porque as meninas geralmente ficam escondidas em casas e motéis e são as mais velhas que fazem contato com os clientes. As batidas policiais feitas nesses lugares, em boa parte das vezes, também não surtem efeito.

Mas, além da exploração sexual, é possível ver pela regional crianças pedindo esmola ou cuidando de carros, embora a conselheira afirme que o problema diminuiu significativamente devido ao trabalho feito pelo Resgate Social, da Fundação de Ação Social, da Prefeitura de Curitiba, que faz as abordagens e encaminha as crianças para os programas sociais da Prefeitura e também ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), do governo federal. Em Curitiba, 3.874 crianças são atendidas pelo Peti.

Boa Vista

Na Regional do Boa Vista, pelo relato do conselheiro tutelar, Luiz Juvêncio Pereira, as coisas são mais tranqüilas em relação ao trabalho infantil, mas não deixam de preocupar. O maior problema verificado são as crianças e adolescentes que precisam cuidar dos irmãos menores para que a mãe, única provedora da família, possa trabalhar.

Santa Felicidade

O mesmo problema se repete na Regional de Santa Felicidade. A conselheira Maria Bernadete Strapasson diz que uma vez atendeu o caso de uma adolescente que teve que parar de estudar para cuidar dos irmãos menores. Por dois anos, ela repetiu a 5.ª série e desistiu da escola. A mãe saía de casa às 6h e voltava às 19h. Para a garota, a responsabilidade foi muito grande e ela chegou até a tentar o suicídio. Depois disso, o conselho tutelar interviu e a mãe arranjou outro trabalho para que pudesse ficar mais tempo com os filhos. A menina voltou a estudar e no ano que vem os irmãos vão para escolas em período integral. Este ano não havia vagas.

Pinheirinho

Na região do Pinheirinho, o uso de crianças e adolescentes para transportar mercadorias não é mais uma grande preocupação na Central de Abastecimento do Paraná (Ceasa). Em conversas com a direção do órgão, foi proibida a entrada de crianças e, segundo a conselheira Jussara da Silva Gouveia, não tem mais recebido denúncias. Mas, por outro lado, a exploração sexual é presente, embora tenha diminuído com o fechamento de 10 bares que existiam às margens da BR-116.

Portão

Na região do bairro Portão, a exploração sexual é observada pelo conselho tutelar e, segundo a conselheira Daiana Prestes Machado, ?boa parte dessas meninas já foram violentadas dentro da própria família?.

Centro

Na Regional do Centro a situação também preocupa. Além de meninos e meninas de Curitiba, são encontrados garotos da Região Metropolitana. Na semana em que a reportagem foi até o Conselho, foram retirados 12 adolescentes das ruas. Quando estão nessa situação precisam trabalhar para sobreviver. Fazem malabarismo ou comercializam balas em sinaleiros, se prostituem ou se envolvem com as drogas.

Cajuru

Na Regional do Cajuru, o conselho tutelar não repassou informações sobre a situação, mas sabe-se que lá as drogas estão entre os problemas mais graves. Adolescentes com 12 anos já trabalham para o tráfico fazendo entregas. Nesse meio, eles também acabam virando usuários, o que torna mais difícil, ainda, construir um futuro melhor.

Histórias se repetem nas regionais

As histórias narradas pelas conselheiras se repetem, praticamente, em todas as regionais, mudando apenas a intensidade em que ocorrem e os seus personagens. Para quem convive de perto com todos esses problemas, a solução definitiva ainda parece estar longe. Apesar de a Prefeitura de Curitiba oferecer uma série de programas sociais – como contraturno escolar, desintoxicação, abrigamento, atendimento à saúde e psicológico, profissionalização e apoio familiar – ainda faltam vagas para dar conta de toda a demanda e o trabalho dos conselheiros acaba não surtindo o efeito esperado.

Essa é a opinião da procuradora do Trabalho, Margaret Matos de Carvalho. Ela diz que a Prefeitura de Curitiba possui uma das melhores redes de proteção do País, mas ainda é insuficiente. Ela cobra políticas de proteção e também de promoção social, com atenção especial voltada para a família. Ela aponta três caminhos. Um deles é elevar a escolaridade dessas pessoas; outra é garantir a permanência das crianças na escola; e, por último, estimular a geração de renda. Só depois que o poder público cumprir estas três metas é que a família pode ser responsabilizada pela exploração.

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