No fundo do poço

Moradores de rua viram parceiros da morte

Após uma década da vida nas ruas, o pedreiro David Blenk, de 49 anos, se diz cansado e revela que pensa todos os dias em morrer. “Não tenho coragem de me matar, apesar de já ter pensando em me jogar debaixo de um caminhão, mas queria morrer de morte morrida, dormindo talvez. Não aguento mais essa vida e acho que não tenho jeito. O vício me consumiu e não sei mais se consigo sair”, diz ele, que é um dos 4 mil moradores de rua de Curitiba.

Nascido em Ponta Grossa, David chegou à capital há dez anos após deixar a esposa e duas filhas. Desde então, vive pelas praças de cidade alternando períodos em pequenas pensões do Centro. Alcoólatra e viciado em drogas, David assume que os vícios o mantêm na rua.

“Na semana passada estava empregado, com carteira e tudo. Mas depois que recebi meu salário e vi que havia recebido menos, fiquei nervoso e fui direto pro bar. Depois do primeiro gole de cachaça é que começa tudo. Daí eu parto pras drogas e rola de tudo: cocaína, maconha, crack. Já cheguei a me injetar. No outro dia a empresa assumiu o erro e me pagou o resto. O que eu fiz? Fui ao banco, saquei e gastei tudo em droga e bebida. O vício é maior”, lamenta.

Briga

David afirma que a vida nas ruas é violenta e relatou que há pouco mais de dois meses foi espancado por outros moradores de rua por causa de um cobertor. “Quando eu me dei conta, tinham dois caras me batendo. Falavam que aquele ponto era deles e eu tinha que deixar a coberta com eles. Fiquei mal. Meu rosto ficou todo estourado e ainda manco quando caminho”, relata.

Apesar da violência das ruas, o pedreiro diz que prefere dormir nos espaços públicos da cidade do que nos albergues que a FAS oferece. “Nesses lugares sempre há muita cobrança, pressão e grito. Não me sinto bem. Então vou pras ruas. Para não apanhar mais, agora fico indo de um lugar pro outro, buscando um lugar seguro e quente”, conta.

Cresce migração pros bairros

De acordo com números da FAS, nos últimos anos os registros de atendimentos à população de rua tem crescido consideravelmente nos bairros. O relatório do órgão público mostra que só as regionais do Boqueirão e CIC atenderam quase 500 pessoas no ano passado. “Percebemos essa pulverização. Precisamos distinguir moradores de rua pedintes e moradores de rua que exercem algum trabalho, como pedreiro ou catador de material reciclado, e por isso se concentram fora das áreas centrais de Curitiba”, afirma Rocha.

Proposta é atender melhor

De acordo com o assessor técnico da FAS, Antônio Carlos Rocha, o perfil de David é apenas um dos exemplos dos casos atendidos diariamente pelo órgão. “Essa é uma população heterogênea. Há diversos motivos para uma pessoa ir para as ruas, desde o envolvimento com álcool e droga até desavenças familiares. Mas, por incrível que pareça, os vícios não são os motivos mais citados para nossas equipes, e sim problemas com pais e outros membros da família e também o desemprego”, explica.

Ainda segundo Rocha, uma das maiores dificuldades em relação ao atendimento à população de rua se deve ao fato de muitas dessas pessoas não se adaptarem à capacidade dos albergues da prefeitura. “Como nossos Centros POP de Resgate Social atendem grande número de pessoas, alguns não gostam de permanecer em espaço com esse número de pessoas, por terem bagagens emocionais pesadas e histórico com drogas. Porém, a maioria das pessoas atendidas nos procura por vontade própria e não por ação dos nossos agentes”, constata.

Descentralização

Para tentar aumentar a capacidade de atendimento, o assessor explica que até o ano que vem o objetivo é instalar em cada uma das nove regionais da prefeitura um Centro POP de Resgate Social, já como parte do plano d,e Política Nacional para a População em Situação de Rua, que a prefeitura aderiu na semana passada. “Essa é proposta nossa. Acreditamos que com essa descentralização vamos poder atender mais gente e com mais qualidade. Nos espaço atuais atendemos muita gente, mas não conseguimos nos dedicar ao atendimento personalizado. Então, com esses centros espalhados pelas cidades vamos poder otimizar nosso trabalho”, conta.

Luta é por dignidade e justiça

O Movimento Nacional da População de Rua luta para que a política nacional chegue a quem realmente precisa ser atendido. “Que o prefeito e secretários tenham vontade política para tirá-la do papel e implementá-la efetivamente”, diz o coordenador do grupo, Leonildo Monteiro. Em audiência pública da prefeitura em abril, ele listou como demandas da população de rua o acesso gratuito aos restaurantes populares, a limitação do atendimento das casas de acolhimento a 50 usuários e a instalação de equipes especializadas de atendimento nesses equipamentos.

“O acolhimento é importante porque quando a pessoa vai para a rua é porque a família já a expulsou, os amigos já não gostam mais. É o fundo do fundo do poço. A maioria da população de rua quer sair da rua. Mas os que querem continuar têm que ser tratados com dignidade e justiça”, afirmou.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna