Maria foi internada em estado grave no Hospital de Clínicas de Curitiba (HC), vítima de uma complicação renal. Em dois meses estava com o quadro estabilizado e pronta para voltar para sua casa. Porém, com 78 anos, Maria precisava de um cuidador que a levasse a sessões de hemodiálise três vezes na semana e só sob esta condição poderia deixar o hospital. Foi em razão das falhas no tratamento que Maria acabou na UTI do HC.
Por oito meses, a idosa ficou no hospital à espera do filho, único familiar que ainda tinha. Mas o homem, caminhoneiro, alegou não ter condições de busca-lá e assim Maria fez do HC sua casa provisória. Fez amizades com enfermeiros, médicos e o pessoal da assistência social. Insistia em ir para casa, da qual era dona, mas sozinha, foi impedida. No oitavo mês, a senhora, já com sinais de depressão, teve uma infecção hospitalar e faleceu.
Nem mesmo o corpo de Maria o filho foi buscar. Pediu que um parente da esposa fosse até o hospital fazer a liberação. “Foi uma história que me marcou muito. Porque ela falava, andava, estava bem, tinha a casinha dela, simples, mas tinha”, lamenta Solange Gezielle dos Santos Coning, supervisora técnica do Serviço Social do HC.
Esta é apenas um das tristes histórias de pacientes abandonados por familiares em unidades hospitalares em Curitiba. Em sua maioria são idosos e, apesar de ter casos em que a condição social é realmente um empecilho, há também as lamentáveis histórias das famílias que aproveitam da doença para “se livrar” do peso de ter de cuidar de um parente com necessidades médicas e especiais. Nem mesmo o Ministério Público tem conseguido reverter este cenário que é muito comum nas unidades médicas.
E nesta série de matérias “Deixados para trás”, o Paraná Online vai mostrar a dificuldade dos hospitais para conduzir a situação e como o MP e entidades atuam neste problema para encontrar soluções que não coloquem em risco a vida dos pacientes. A série mostrará ainda a dificuldade das famílias que não conseguem atender às necessidades de seus parentes que já estão com alta, mas que precisam de atendimento especial e integral em casa. E também traz uma reportagem sobre pacientes moradores de hospitais psiquiátricos.
HC e UPAs têm 21 abandonados
Hoje, o Hospital das Clínicas tem seis pacientes em situação semelhante à de Maria, chamados de pacientes abandonados. Todos com alta, mas sem um familiar interessado em buscá-los. Alguns visitam esporadicamente, perguntam como estão e vão embora. No Hospital do Trabalhador são dois casos. Mas Cajuru, Evangélico, Santa Casa e até o Pequeno Príncipe já tiveram registros de casos de abandono. Nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), a Fundação Social de Curitiba (FAS) atende 15 casos.
Em sua maioria, esses pacientes são idosos deixados por filhos, cônjuges e outro familiar com quem viviam. No HC são quatro mulheres e um homem que já chegaram à terceira idade. A sexta paciente tem 55 anos. Uma das idosos espera para voltar para casa há três anos. Com 83 anos, precisa de cuidados especiais, pois não se locomove sozinha e faz uso de fraldas geriátricas. “Ela tem momentos de lucidez, fala nos familiares, mas ainda está aqui. Os cuidados que ela precisa são simples, que qualquer um pode prestar. Sem falar que há treinamento para que os familiares possam atender bem o paciente”, explica Solange.
Há seis anos no Serviço Social do HC, hoje Solange acompanha dois pacientes que estão há três anos no hospital, um que está há um anos e outros três com apenas alguns meses. Todos restritos ao leito, e com exceção da senhora de 83 anos, os demais estão com algum equipame,nto evasivo, como sondas. Mas de acordo com a assistente social, todos com condições de serem tratados em casa, até por conta da rede pública de atendimento que dá o suporte necessário. “Tentamos resolver com a família, conversamos, já preparamos antes para que eles fiquem prontos no momento da alta, mas quando não temos resposta começa o processo judicial com o Ministério Público”, conta Solange.
A assistente social conta ainda que na maioria das vezes as famílias afirmam não ter condições para cuidar do paciente. Mas para ela, a insegurança também pesa nesta decisão. “As famílias se sentem mesmo inseguras, mas com o treinamento podem dar todo atendimento necessário. São atendimentos básicos. E estes pacientes precisam não só deste cuidado, como do afeto das famílias”, acrescenta Solange.
Para a diretora de Proteção Social Especial da FAS, Angela Mendonça, é preciso ter moderação ao falar e tratar de cada um dos casos de pacientes que estão ocupando vagas nas UPAs, mas já com alta e na espera por familiares. Cada caso precisa ser analisado antes de chegar à alçada judicial, com intervenção do MP. “São situações em que a família precisa de ajuda, tem que ter cuidado. Só quando a família não quer mesmo ficar com o paciente acionamos o Ministério Público. Nem todo caso é de abandono, mas de falta de condições mesmo”, explica Angela.
O promotor da defesa dos Direitos do Idoso, Mario Luiz Ramidoff, atua em casos de abandono em hospitais, mas alerta que antes de qualquer medida é preciso ver que tipo de assistência as famílias estão recebendo. “É preciso um apoio institucional às famílias, que muitas vezes não têm. Não podemos somente criminalizar”, explica.
Enquanto as diferentes entidades tentam chegar a uma solução, os pacientes seguem em seus leitos à espera do afeto das famílias.
Vagas sempre ocupadas
Lineu Filho |
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Série também vai mostrar situação de hospitais psiquiátricos. |
A permanência do paciente na unidade médica após a alta não traz à tona apenas a uma realidade de desapego e desinteresse familiar e suas necessidades socioeconômicas para atender um parente com necessidades. Um paciente em alta que precisa ficar na unidade hospitalar limita também o uso dos leitos. No Hospital das Clínicas, conforme levantamento feito pelas unidades que abrigam pacientes em alta, o número de atendimentos que deixam de ser feitos é alto. Os seis pacientes que estão no HC ocupam leitos que deveriam estar sendo usados como Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou leito de isolamento para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Na unidade de Neurocirurgia, o leito ocupado por um idoso que está de alta desde outubro de 2011, 110 pacientes poderiam ter sido atendidos neste período. Na cardiologia são dois pacientes, um de alta desde junho de 2011 e outro mais recente, de maio deste ano. Ambos impediram que 106 pacientes fossem tratados nos respectivos leitos. Somando o período de cinco leitos ocupados, são 261 pacientes que poderiam ter sido atendidos . Estes pacientes estão internados nas unidades de Neurologia, Cardiologia (duas diferentes) Neurocirurgia e Clínica Médica. Segundo a assessoria de comunicação do HC, o número é estimado. O cálculo foi realizado levando em consideração o número total de dias em que o leito permanece ocupado, pelo tempo médio de ocupação dos leitos, em cada especialidade.