Foto: Ciciro Back/O Estado |
Uma série de atividades desenvolvidas por organizações não governamentais têm colaborado para o resgate da atividade cultural. continua após a publicidade |
Com apenas 8 anos, Leonildo Fideles Pereira ficava encostado em seu pai, apenas observando ele tocar a viola. Mas era quando o pai saía que Leonildo pegava o instrumento escondido. Aos 15 já formava uma dupla com o irmão, e hoje, aos 65 anos, é conhecido como Mestre Pereira. O adjetivo ao nome ele ganhou por se tornar uma das principais figuras da divulgação do fandango, a mais importante manifestação cultural do litoral do Paraná. Aos que dizem que o fandango está acabando, Mestre Pereira dá um recado: ?O fandango não está morrendo. Ele está mais bonito e quase igual ao que era antes. A gente é que morre, e o fandango fica?.
E parece que Mestre Pereira tem razão. A prova disso foi o Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, que aconteceu no último final de semana em Guaraqueçaba, onde mais de 20 grupos fandangueiros dos municípios do litoral norte do Paraná – Morretes, Paranaguá e Guaraqueçaba -, e sul de São Paulo – Iguape e Cananéia – se reuniram para apresentações e discussões sobre a manutenção da cultura. Alheios à programação oficial do evento, não eram poucos os grupos de fandangueiros que se reuniam pelos morros da cidade para entoar suas modas. Com mais de 50 anos de fandango, os primos Antonio, João e Genir Pires, da Barra do Ararapira, de Guaraqueçaba, aproveitaram o encontro para relembrar os velhos tempos. ?Antes o fandango era feito todo final de semana. Hoje é mais tocado em datas de festa?, comentam. Mas para Abílio Valdoíno, 72 anos, e Alcides Rodrigues, 89 – que não se separa do seu par de tamancos de madeira -, o fandango é o que move a comunidade do litoral. ?A gente dança para se divertir e esquecer da pobreza?, disse.
Além das pessoas mais velhas, muitos jovens estão despontando e já fazem dos instrumentos típicos – rabeca, viola e adufo – seus companheiros inseparáveis. A família Neves, que veio da praia do Marujá, na Ilha do Cardoso (SP), é formada por irmãos e primos que aprenderam com os pais a gostar do fandango. Alguns até se lembram dos tradicionais mutirões – também conhecidos com puxirões ou pixiruns -, que eram trabalhos coletivos, quando as pessoas da comunidade se reuniam para roçadas, colheitas ou construção de benfeitorias, e, como forma de pagamento aos voluntários, o organizador oferecia um baile de fandango com comida farta. Muitos deles também sobreviveram à ?era da tecnologia?, quando nas décadas de 70 e 80, com a chegada da rádio e da televisão, não se tocava mais o fandango.
Incentivo
Família Neves: volta às origens. |
Salvador Alberto das Neves comenta que a partir da década de 90 os caiçaras começaram a tocar viola e realizar fandangos para atrair os turistas, mas hoje vivem o resgate da cultura. ?Estamos voltando às origens. Até o pessoal mais novo está envolvido?, disse. Segundo ele, uma série de iniciativas que estão sendo desenvolvidas por organizações não governamentais tem ajudado nesse resgate. ?Antes a viola caipira ia do sítio para a cidade, mas hoje ela vem da cidade para o sítio?, lembrou. Um dos projetos destacados por Salvador é o Museu Vivo do Fandango, uma iniciativa que começou há cerca de três anos como forma de incentivo e reconhecimento do fandango e da cultura caiçara.
O Museu Vivo é um projeto desenvolvido pela Associação Cultural Caburé, do Rio de Janeiro, que trabalha com a pesquisa e resgate de diversas vertentes culturais. O integrante da ong Alexandre Pimentel conta que o trabalho iniciou quando eles resolveram fazer o mapeamento do uso da rabeca na música brasileira. ?Foi quando chegamos no litoral do Paraná e descobrimos os problemas e potencialidades?, comentou. A partir daí, promoveram uma série de oficinas nas comunidades e disponibilizaram pontos de consulta sobre os fandango nas cidades.
No ano passado, uma equipe de áudio e vídeo permaneceu 40 dias trabalhando nos litorais do Paraná e São Paulo. O resultado foi o lançamento de um livro catálogo e dois CDs -que reuniram cerca de 300 fandangueiros. Na avaliação de Pimentel, o fandango perdeu força depois que os mutirões foram acabando. Mas hoje, através da formação de associações que ensinam o fandango e a construção de instrumentos, isso vem mudando. ?Através das apresentações, muitos jovens estão se interessando. Podemos dizer que o fandango não está acabando, mas surgindo de outra forma, e se adaptando a novas realidades?, avaliou.
Nas cidades do litoral existem grupos que ensinam o fandango aos jovens. Em Paranaguá estão os grupos do Fandango Caiçara e do Mestre Eugênio. Mas o mais antigo é o comandado por Romão Costa, mais conhecido como Mestre Romão. Com 75 anos, o estivador aposentado dança fandango desde os 12 anos de idade e ainda acha forças para difundir sua arte entre os mais novos. Na cidade também existem iniciativas para promover cursos de construção de instrumentos. Em Guaraqueçaba, uma das figuras mais marcantes é o Mestre Pereira, que hoje luta para conseguir um espaço para ensinar fandango para as crianças.
Dança está ligada ao modo de vida caiçara
A origem do fandango – dança popular a três tempos e sapateada – apresenta muitas distorções. Para alguns pesquisadores, ele é de origem árabe. Para outros, vem de Portugal e Espanha. Mas independente de onde veio, no litoral se tornou a principal manifestação cultural ligada ao modo de vida caiçara – termo que define o modo de vida que combina a pesca, a agricultura e o extrativismo na região litorânea. Além de estar vinculado aos mutirões, o fandango também era a principal diversão das comunidades, presente em festas religiosas e no Carnaval, quando os quatro dias de folia eram regidos pelo fandango.
A dança do fandango se divide em dois grupos: o fandango batido e o valsado. No batido, os tamancos de madeira têm papel fundamental, por ditarem o ritmo e o compasso. Esse acessório é exclusivo dos homens. Já no valsado há uma espécie de valsa lenta, quando os dançarinos se arrastam pelo salão. Os instrumentos utilizados no fandango são confeccionados artesanalmente, utilizando-se de faca, canivete, formão e o alegre – ferramenta que trabalha as curvas e reentrâncias da madeira, também usada para fazer colher de pau. A madeira preferencial é a caxeta, mas são utilizadas canela e imbuia para fazer os detalhes e acabamentos. Entre os instrumentos estão: a rabeca ou rebeca, uma espécie de violino rústico de três ou quatro cordas; o adufo, que é um pandeiro feito com madeira e couro de animal; e a viola, também feita de caxeta, com cinco ou seis cordas duplas e mais meia corda, a turina.
Infelizmente, hoje são poucos os caiçaras que fabricam seus instrumentos. Além da falta de habilidade, as leis ambientais estão restringindo o uso da caxeta para a fabricação das peças. A maioria dos instrumentos é comprada nos grandes centros ou feita sob encomenda para artesãos de diversas localidades. Mas em Cananéia, no litoral de São Paulo, foi formada uma associação que trabalha com um plano de manejo da caxeta. O artesão e rabequista Amir Oliveira conta que desde 1999 o projeto foi aprovado pelo Ibama e todo produto utilizado na fabricação dos instrumentos é retirado de maneira sustentável. Com isso eles também conseguem manter o preço, sendo que uma rabeca é vendida por R$ 200 e um adufo por R$ 150.
Estudos apontam fase de dormência
Apesar de todas as manifestações para manter viva a cultura do fandango, muitos estudos apontam que ele vive uma fase de dormência. Um trabalho de pesquisa feito pelas professoras Patricia Novak e Tellma Suckow Leal Dea, que resultou no livro Fandango Paranaense da Ilha de Valadares, lançado no ano passado, apontou alguns fatores principais para esse cenário.
Entre eles, o surgimento de outros ritmos musicais, como o tango argentino e a valsa, que conquistaram as pessoas, que passaram a taxar o fandango de ?coisa de caboclo?. Também a convocação dos jovens para servir o Exército, que iam para a cidade e geralmente não voltavam mais. E ainda, muitos levavam toda a família embora. Mais recente, o ?ciclo religioso?, com o surgimento de diversas religiões evangélicas, que consideram o fandango como ?pecado?. ?Muitos fandangueiros se convertem à religião e abandonam a cultura?, comenta Tellma.
A mesma influência negativa da igreja na preservação da cultura foi feita pelo fotógrafo Carlos Roberto Zanello de Aguiar, o Macaxeira, que junto com o escritor Edival Perrini lançou no mês passado o livro Fandango do Paraná: Olhares. O trabalho é a coletânea de 161 fotos feitas ao longo de 20 anos de estudos e amizades com os fandangueiros. ?As leis ambientais e as igrejas evangélicas atrapalham e são ruins para a continuidade da cultura?, diz Macaxeira.