Uma tragédia anunciada se repete todos os anos durante o verão: os afogamentos daqueles que se arriscam a nadar nas cavas. Em 2006, até a semana passada, o Corpo de Bombeiros registrou 13 mortes por afogamentos nas cavas da Região Metropolitana de Curitiba, contra seis falecimentos no litoral. O problema, porém, é consequência de um outro fator.
As cavas são formadas pela exploração de areia e argila em áreas de várzeas dos rios. Se tornaram buracos enormes, com muita profundidade. Muitas das cavas existentes hoje foram deixadas para trás por aqueles que tiravam a areia de maneira clandestina. Os locais abandonados, sem qualquer tipo de recuperação da área degradada, acabaram assumindo o papel de lazer para as pessoas que não podem ir para a praia tomar um banho de mar para refrescar. E, conforme os ambientalistas, o número de cavas está se proliferando pela região metropolitana, o que representa um risco cada vez maior, tanto para a natureza quanto para as pessoas que se aventuram nestes lugares.
A atual exploração de areia na Grande Curitiba acontece principalmente nas várzeas do Rio Iguaçu. Quase toda a areia encontrada na capital vem das cavas feitas perto desse rio, segundo a Associação dos Mineradores de Areia e Saibro do Paraná (AMAS/PR). Existem 40 pontos de extração de areia na região e a produção chega a 100 mil metros cúbicos de areia por mês.
José Paulo Loureiro, da organização não governamental Atmosfera, que atua em Araucária, afirma que 40% da calha do Rio Iguaçu na região está degradada e cheias de cavas abandonadas. A exploração está sendo feita sem controle e, de acordo com ele, não vai sobrar nada nas áreas de várzea em seis anos, caso o ritmo de extração não diminua. A retirada de areia está concentrada principalmente em Araucária, Contenda e Balsa Nova. "De Fazenda Rio Grande para cima já não existe mais areia. As várzeas são depósitos que levaram milhões de anos para serem formados. Não é um recurso renovável. Além de acabar com a flora, eles acabam com a fauna também, pois é na várzea que os animais encontram água e comida", comenta Loureiro.
Lídia Lucaski, presidente da Associação de Defesa do Meio Ambiente de Araucária (Amar), denuncia a atuação dos areais há mais de vinte anos. A briga resultou em várias ações civis públicas e alguns embargos em empresas que atuam neste ramo. "As cavas ajudam na proliferação de mosquitos e causam uma morte lenta nas pessoas que entram em suas águas, contaminadas com metais pesados, hormônios, coliformes fecais, além dos afogamentos", explica.
Lídia acredita que a fiscalização é deficitária e que os exploradores não se adequam à legislação ambiental. "A lei é muito clara. Quem depreda tem a obrigação de reparar o dano. São áreas de preservação ambiental e ainda há muitas empresas irregulares que insistem em fazer a extração. Infelizmente, os interesses econômicos e políticos permitem que isso continue", aponta.
Loureiro revela que muitas empresas de extração de areia arrendam áreas e depois as abandonam. "Enquanto não for proibido, o problema vai continuar. Quando os areais ficaram embargados, o preço da areia já estava mais caro do que a areia artificial", enfatiza. Ele lembra que existem substitutos para o uso de areia natural na construção civil. Tanto a areia artificial (pedra moída) quanto o pó de pedra (proveniente da brita) podem ser utilizados no ramo com a mesma propriedade e resultado. "São opções mais baratas e com menor impacto ambiental, já amplamente instaladas no mercado. Inclusive reduzem o consumo de cimento. O problema é cultural, falta consciência", conclui Loureiro.
Ong tem projeto para recuperar áreas degradadas
José Paulo Loureiro, da ong Atmosfera, desenvolve um projeto para a recuperação das várzeas que já foram degradas pela exploração de areia e que apresentam muitas cavas. Consiste em preencher os buracos formados com material inerte, sem contaminação, como a terra retirada após uma terraplanagem. Depois do preenchimento, é colocada uma capa de 40 centímetros de terra fértil, onde são plantadas mudas da vegetação oriunda da região. O projeto está em fase experimental, com o apoio de um dos areeiros de Araucária. "O preenchimento não está deixando água para mosquito se desenvolver ou para alguém se afogar", argumenta.
As entidades ambientais de Araucária vão encaminhar ao governo do Estado, por meio do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), um projeto para a criação de um parque para a preservação das várzeas que ainda permanecem intactas ou pouco degradadas. A área teria 3,8 mil hectares de extensão, margeando 41 quilômetros do Rio Iguaçu. O parque seria o maior da região metropolitana e conectaria as áreas de preservação das barragens do Passaúna e do Rio Verde. "Seria uma grande unidade de conservação interligada", analisa Loureiro.
Mineradores alegam cumprir leis ambientais
Um dos integrantes da diretoria da Associação dos Mineradores de Areia e Saibro do Paraná (AMAS/PR), José Emir Scroccaro, conta que muitos exploradores deixavam as áreas de qualquer jeito, sem qualquer tipo de nivelamento ou sinalização. Hoje em dia, as mineradoras fazem a extração de areia seguindo as orientações ambientais. "É impossível não deixar a cava, mas o pessoal está replantando árvores e adotando outras medidas ambientais. Hoje já há consciência de que é preciso mudar, se adequar à lei", indica. "O problema é que falta consciência de que esses lugares são perigosos. O povo abusa do perigo. As mineradoras colocam guardas, cercas e placas, mas esta parte fica difícil para as empresas controlarem. O problema das cavas sempre vai existir", afirma.
Como não é permitida a retirada de areia do leito do Rio Iguaçu (e a qualidade da areia não é tão boa para os padrões do mercado), todo o produto tem que ser retirado das várzeas. Scroccaro admite que ainda existem empresas clandestinas que praticam a atividade. Entretanto, a irregularidade está sendo combatida com a atuação da associação. "Estamos tentando tirar do meio quem explora de forma clandestina. Damos força ao IAP para que as empresas fazem a adequação à legislação. Muitos aventureiros chegam e devastam. Infelizmente, os bons pagam pelos maus. Estamos fazendo um trabalho sério para organizar o setor", relata.
IAP firma acordos para preservar as várzeas
O presidente do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), Rasca Rodrigues, informa que não há como fazer a extração da areia sem deixar que as cavas sejam formadas. A legislação diz que os exploradores só podem retirar areia a partir de 500 metros de distância em relação à margem do rio. "Essa atividade sempre foi complicada, pois não tem como fugir de uma exploração degradadora", declara Rodrigues.
As cavas sempre vão existir enquanto houver a extração de areia, de acordo com ele. Não haveria jeito de tampá-las, pois o material de preenchimento seria retirado de algum outro lugar. "O problema é que até agora não existe outro substituto para a areia no uso para a construção civil", explica Rodrigues.
O IAP está firmando acordos com as empresas de extração de areia para garantir a preservação das várzeas. O órgão está obtendo sucesso em firmar termos de conduta e ajuste com os exploradores, conforme Rodrigues. Ele ressalta que a responsabilidade pela área é dos proprietários. "O grande problema são os areais irregulares, que não temos como identificar. Exploram de noite, durante pouco tempo. Quando é regular, tem que obter licença ambiental e várias medidas devem ser cumpridas. A exploração irregular é como desmatar a floresta: quem corta, está cometendo um crime", diz. Ele enfatiza que a fiscalização está sendo reforçada nas áreas de várzea.
Desconhecimento e excesso de confiança: combinação fatal
O excesso de confiança e o desconhecimento do perigo são os ingredientes mortais para quem se aventura em nadar nas cavas, segundo o tenente Leonardo Mendes dos Santos, relações-públicas do Corpo de Bombeiros. Ele explica que as cavas possuem fundos irregulares. Às vezes, a pessoa acha que está no raso e, quando dá um passo para a frente, cai em um buraco. Os banhistas ainda correm o risco de ficarem presos em cercas de arame farpado, árvores e até mesmo carcaças de automóveis (jogados após serem roubados), que ficam no fundo das cavas.
A chance de afogamento se agrava ainda mais se a pessoa estiver embriagada, pois fica suscetível à cãibras e congestão. Santos faz outro alerta: a insalubridade da água parada nas cavas. "Esses locais são impróprios para o banho porque podem ocasionar infecções gastrointestinais, dermatite e até mesmo leptospirose", avisa.
Apesar dos contínuos alertas, as pessoas continuam procurando as cavas para se refrescar. E isso preocupa o Corpo de Bombeiros. "Às vezes são locais afastados e o atendimento demora para chegar. A maioria que passa por dificuldades dentro da água acaba morrendo", esclarece Santos. Dos 73 casos de afogamentos registrados no ano passado, 47 resultaram em mortes. No entanto, no litoral, foram seis mortes entre 1.015 salvamentos no mesmo período. "As pessoas devem procurar outras formas de lazer", orienta.
O Corpo de Bombeiros não disponibiliza guarda-vidas para estes locais porque não concorda com as atividades dos banhistas nas cavas. "É uma questão mais de consciência do que de colocar profissionais para fazer a assistência. Daria uma falsa sensação de segurança. Estaríamos sendo coniventes com a situação", esclarece Santos.