Especialistas indicam pontos críticos das ferrovias do Paraná

Dia 30 de abril de 1854. Essa é a data que começa a história das ferrovias brasileiras, quando o imperador dom Pedro II inaugurou a primeira estrada de ferro no Brasil. Ela foi construída no Rio de Janeiro, pelo Barão Mauá, patrono do Ministério dos Transportes. É uma história longa, repleta de histórias trágicas, já que há mais de 150 anos trabalhadores desbravaram matas e enfrentaram muitos obstáculos para construí-las, tornando-se símbolo de desenvolvimento econômico. Hoje, no entanto, o que um dia significou crescimento, sofre com problemas que, segundo especialistas, estão prejudicando a economia brasileira, deteriorando o patrimônio histórico e, em alguns casos, prejudicando o meio ambiente.

Depois de 143 anos da construção da primeira ferrovia no Brasil, 25.869 quilômetros de estradas de ferro brasileiras que haviam sido estatizadas em 1917 passaram para mãos de empresas privadas. Antes da desestatização, a malha estava nas mãos da União por meio da estatal Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), criada em 1957. Em meio a muita polêmica, intervenções e ações propostas pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais, especialistas garantem que depois da desestatização, a malha foi sucateada, o transporte e as empresas que dependem dele foram prejudicados e acidentes estão depredando o meio ambiente.

Paraná

É a mesma situação em todo o País. ?A privatização foi para desenvolver os trechos antieconômicos. A Rede ganhava dinheiro nos trechos rentáveis e sustentava os não rentáveis. E hoje, por falta de uma fiscalização mais rigorosa daquilo que foi colocado nos contratos de concessão, as empresas abandonaram e não conservam esses trechos. O Brasil tem 10 mil quilômetros de trilhos abandonados. Isso significa um investimento de US$ 10 bilhões jogados fora?, constata o engenheiro mecânico, consultor em logística e ex-superintendente da RFFSA, Saulo de Tarso Pereira. No Sul do Brasil a concessão foi dada à América Latina Logística (ALL), em 1997. A empresa ficou responsável por 7.225 quilômetros da malha brasileira, mas não informou quantos, desse total, estão ativos atualmente.

Pereira ressalta que os índices de acidentes e principalmente a velocidade média dos trens comerciais depois da desestatização denunciam a precariedade do serviço. ?A velocidade média da Rede sempre foi 33 km/h?, contou. O último relatório sobre a ALL, disponibilizado no site da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), instituição federal que regula o setor, dava a velocidade média, em dezembro de 2006, como 17,2 km/h. ?Diminuir a velocidade significa mascarar os indicadores. Vai chegar uma hora que o trem vai andar a 5 km/h. Daí não vai ter acidente mesmo, mas não quer dizer que a manutenção é bem feita?, salientou Pereira.

O contrato de concessão da ALL, assinado no dia 27 de fevereiro de 1997, prevê que a empresa cumpra metas de produtividade e de redução de acidentes e conserve o patrimônio que era da RFFSA. A reportagem de O Estado teve acesso ao contrato de concessão, mas não ao anexo contratual que enumera o patrimônio que era da Rede e ficou sob responsabilidade da ALL. Os relatórios anuais disponibilizados pela ANTT mostram a queda no número de acidentes, o cumprimento da meta e a diminuição da velocidade. Em 2006, a ALL registrou 195 acidentes. Este número é pouco menor dos apresentados nos anos anteriores.

Quando se fala em acidentes, chama atenção a gravidade deles. Entre os ocorridos em 2006, a maioria (44) foi considerada grave e 42 tiveram vítimas. Já as causas estão principalmente na via permanente (trilhos). Do total, 101, ou 51%, acontecerem por este motivo em 2006. Outros 48 não têm as causas determinadas e 39 acontecerem por culpa do material rodante (locomotivas ou vagões). Os sete restantes foram frutos de falha humana.

Mudança de paisagem

Foto: Daniel Derevecki
Na Serra do Mar, os trilhos estão mais conservados e foi possível
ver funcionários da ALL fazendo
a manutenção.

A reportagem de O Estado percorreu alguns trechos para verificar, com base em informações colhidas com dois especialistas – o ex-superintendente da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), Saulo Pereira e o engenheiro civil, consultor em transportes e diretor do Sindicato dos Engenheiros do Estado do Paraná (Senge-PR), Paulo Sidnei Ferraz -, o estado de conservação da malha em alguns locais de Curitiba e região metropolitana e da Serra do Mar, no litoral do Estado.

Na capital e cidades ao redor foi possível constatar em quase todos os locais mato alto, dormentes trincados, muita terra entre trilhos (e muitas vezes na altura dos trilhos), trechos desmontados, material amontoado ao lado da malha. ?O mato significa que a linha está ficando contaminada e as pedras (que deveriam estar entre os trilhos) perdem a capacidade de absorção. O mato significa falta de drenagem. A água não pode passar por cima ou por baixo do trilho. Ela deve escoar pela lateral?, explicou Pereira.

A reportagem percorreu trechos na divisa de Curitiba com Almirante Tamandaré, próximo às Ruas Francisco Kruger e Pedro Teixeira Alves. Em Rio Branco do Sul percorreu trechos ao redor da PR-418 (Rodovia dos Minérios), em uma região conhecida como Tranqueira. Em Curitiba, a equipe visitou partes da Estação Iguaçu, de onde partem boa parte dos trens para o litoral e outras regiões do Estado, e trechos nas redondezas do Zoológico. Já na região do bairro Sítio Cercado, a reportagem percorreu trilhos na altura da Rua Eli Volpato. Nesse local, inclusive, há uma passagem de nível feita pela própria população. Em dez minutos de observação, já foi possível ver uma situação que por pouco não resultou em um acidente entre dois veículos. Isso porque, por ser um local improvisado, não tem visão nem sinalização adequadas.

Na Serra do Mar, os trilhos do trecho parecem estar conservados e inclusive foi possível ver funcionários da América Latina logística (ALL) trabalhando. Em uma conversa informal, um maquinista disse à reportagem que a velocidade média no trecho é 18 km/h. Já nas antigas estações, que eram usadas pela RFFSA e onde há diversas casas que eram usadas por funcionários da Rede, a situação é outra. Os trilhos estão com muito mato, alguns inclusive já escondidos embaixo da vegetação, e desmontados. As casas estão, em sua maioria, atualmente sob a responsabilidade do Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transporte (Dnit). Duas estações, a do Marumbi e a de Engenheiro Lange, estão sob responsabilidade da ALL e da empresa de turismo ferroviário Serra Verde Express.

?Vamos esquecer isso tudo aqui. Tinha vida, pessoas morando, o pátio era limpo, as casas cuidadas. Mas não me iludo mais. Estou aproveitando o que ainda resta?, desabafou o montanhista Carlos José Bandeira, que mora em uma casa nos fundos da Estação de Engenheiro Lange. Ele é o único morador que ainda se mantém na região. O proprietário de uma pousada em Morretes, no pé da serra, Ibrain Segallo, freqüenta a região como montanhista há mais de 40 anos. Ele também lamenta as mudanças que viu acontecer ao logo dos anos. ?A conservação mudou. No tempo da Rede não se via nada malcuidado?, lembrou. A reportagem de O Estado percorreu a pé os trilhos da Estação Engenheiro Lange, da Estação do Marumbi e a partir de lá até a o Santuário da Nossa Senhora do Cadeado.

Empresas se defendem

Foto: Daniel Derevecki
Antiga Estação Marumbi, na
Serra do Mar: esquecida.

A ALL, por meio de nota enviada pela assessoria de imprensa, explicou que o cumprimento da meta com relação ao número de acidentes se deve ao ?alto investimento em tecnologia, manutenção da via (troca de trilhos de dormentes), treinamentos intensivos das equipes de campo e alta tecnologia?. A empresa nega que a diminuição da velocidade média seja para ?camuflar? falta de manutenção, mas sim, para evitar acidentes em trechos urbanos, variando de acordo com o traçado da via. ?No trecho central do Paraná, entre Ponta Grossa e Apucarana, a velocidade fica em 55 km/h?, exemplificou a nota.

Com relação aos problemas verificados nos trechos percorridos pela reportagem, a ALL informou que ?a limpeza à margem da via segue um cronograma de execução mantido pelas equipes de via. Entretanto, o calor e a chuva típicos deste período fazem com que a vegetação cresça rapidamente?. ?A ALL irá alterar o cronograma e enviar equipes aos trechos mencionados para efetuar a limpeza, conforme solicitação da comunidade?, garantiu a nota. ?Já os trilhos ficam à margem da via para troca?, completou a nota sobre o material encontrado à margem das ferrovias.

A empresa informou o tamanho da malha ferroviária em que atua no Paraná (2.037 quilômetros) e na América Latina (20.495 quilômetros), porém não a malha total somente no Brasil. A ALL afirmou que não há trechos desativados, mas sim ?com baixa demanda de carga?. A nota diz ainda que ?os trechos ferroviários Cianorte-Maringá, Marques dos Reis (Ourinhos)-Fábrica Pisa (Jaguariaiva) e Morretes-Antonina?, todos alvo de ação da AGU por falta de conservação, ?encontram-se em condições de tráfego?.

Em relação à principal causa dos acidentes apontada no relatório da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) em 2006 (a via permanente), a empresa informou que eles podem ter várias causas, mas nenhuma relacionada à manutenção da via: ?quedas de barreiras, flambagem da via (provocada por excesso de calor), trinca (provocada pelo excesso de frio), condução (excesso de velocidade pelo maquinista ou erros na condução), mecânica (quebra de um rodeiro do vagão, frenagem, etc) ou mesmo vandalismo (objetos na linha ou mudança de chave equivocada)?.

A ALL informou ainda que a falta de conservação na Estação Marumbi é porque, ?por se tratar de um lugar úmido e com circulação de todo tipo de gente (quem cuida e quem não cuida), sofreu alguns danos e está no plano de recuperação de bens da empresa para este ano?.

Já com relação à Estação Engenheiro Lange, a Serra Verde Express informou por meio de nota que, ?mesmo sem utilização comercial, a estação recebeu recentemente reparos em sua fachada, que foi totalmente revitalizada, e também no seu interior, que atualmente se encontra vazio?. ?A Serra Verde Express mantém uma pessoa 24 horas presente nas proximidades da estação para garantir a segurança do local e prevenir a ação de vândalos, que por muitas vezes depredaram o local e fizeram com que as duas construções adjacentes à estação ficassem no estado atual.?

Em relação às outras estações, o Dnit informou, também por meio de nota, que essas propriedades ainda estão sob responsabilidade de um Comissão de Inventariança da RFFSA criada pelo Ministério dos Transportes em 2007. Já a ANTT não deu retorno aos telefonemas e e-mails encaminhados pela reportagem de O Estado. (AB)

                      Fotos: Anderson Tozato                        Foto: Daniel Derevecki

Trecho em Curitiba, no Alto da XV, apesar da grande atividade, há trilhos gastos (esq.)
e vandalismo (centro). Na Serra do Mar, linhas desativadas e muito mato alto (dir.).
 
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