Em 12 de agosto de 2020, o governo do Paraná surpreendia com o anúncio da assinatura de um Memorando de Entendimento com o Fundo Russo de Investimentos Diretos (RDIF), que administra a distribuição da vacina Sputnik V contra a Covid-19, desenvolvida pelo Centro Nacional de Pesquisa em Epidemiologia e Microbiologia da Federação Russa, o Instituto Gamaleya. Na época, foi divulgado que russos e paranaenses, por meio do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), ligado ao governo do Paraná, trabalhariam juntos para a elaboração de um protocolo a ser apresentado à Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nas palavras do diretor-presidente do Tecpar, Jorge Callado, tratava-se de um “primeiríssimo passo” para a entrada da vacina no país. Depois, a expectativa do Tecpar era absorver a tecnologia russa e preparar suas instalações para produzir a Sputnik V em território nacional. As conversas entre russos e paranaenses, contudo, não avançaram nem mesmo para o “primeiríssimo passo”, embora tal desfecho não tenha sido totalmente esclarecido pelas partes envolvidas.
Atualmente, o RDIF trabalha para obter a validação da sua vacina no Brasil por intermédio de um parceiro privado, a União Química Farmacêutica Nacional. Um pedido de “Autorização Temporária de Uso Emergencial” da Sputnik V foi protocolado pela União Química na Anvisa em 15 de janeiro último e sua aprovação é aguardada para os próximos dias. Paralelamente a isso, estados brasileiros já demonstraram interesse na compra direta da Sputnik V. Em 16 de janeiro, o governo da Bahia entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com pedido de liminar na tentativa de facilitar a aquisição da Sputnik V. Entre outras coisas, a Bahia pede que o STF reconheça aos entes da Federação a possibilidade de conduzir sua vacinação independentemente do plano nacional. O pedido ao STF tem ligação com o Termo de Cooperação assinado em 8 de setembro de 2020 pelo governo da Bahia e pelo RDIF. O documento prevê a distribuição de 50 milhões de doses da Sputnik V “em um futuro próximo”, além de “compartilhar o conhecimento específico na execução dos ensaios clínicos da vacina no território, se necessário”.
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Os governos do Acre, Sergipe, Paraíba, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí e Maranhão também pedem para ingressar na ADI na condição de “amicus curiae”, demonstrando interesse no caso. Já o governo do Rio Grande do Sul, em 22 de janeiro, encaminhou um ofício diretamente à União Química manifestando interesse em adquirir de forma direta a vacina Sputnik V. No ofício, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, inicia informando que “tradicionalmente” o estado segue o Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde. Mas, na sequência, reforça que “existem enormes desafios para imunizar a população gaúcha no menor tempo possível”: “Considerando que é essencial o aumento do número de pessoas imunizadas, além das ações desenvolvidas no âmbito do PNI, pelo presente vimos manifestar interesse do governo do Rio Grande do Sul para uma possível aquisição direta”.
Sem avançar na parceria com os russos e em um cenário de escassez de vacinas disponíveis para compra, o governo do Paraná conta com o governo federal: “Em relação à aquisição de vacinas contra a Covid-19, o Paraná segue a orientação do PNI, do Ministério da Saúde”, respondeu o Tecpar à Gazeta do Povo. Até 17 de fevereiro, o Paraná aplicou 293.283 doses de vacina (a Coronovac e a Astrazeneca) contra a Covid-19. São 267.652 da primeira dose e 25.631 da segunda dose. Ao todo, o Paraná recebeu 538.900 doses do governo federal até o momento. No plano estadual de vacinação, divulgado no mês passado, o governo do Paraná explica que pretende vacinar em 2021 um total de 4.019.115 pessoas pertencentes a um grupo prioritário, “de acordo com o recebimento dos imunizantes, de forma gradual e escalonada”. “Pretende-se, a partir das projeções do IBGE 2020 no Paraná, que estima um total de 11.516.840 pessoas residentes, expandir a longo prazo a estratégia de vacinação para a população acima de 18 anos de idade ainda não vacinada, que perfaz um total de 8.736.014 pessoas”, aponta.
Negociações começaram ao mesmo tempo
Tanto o governo do Paraná quanto a União Química informam que os primeiros contatos com o RDIF ocorreram em julho de 2020. No mês seguinte, em agosto, o governo do Paraná divulgou a assinatura do Memorando de Entendimento com os russos e, na sequência, o que seria um plano para a realização dos testes no Brasil, com no mínimo 10 mil pessoas e prioridade para profissionais de saúde. “O governo do Paraná submeterá o protocolo de validação da fase 3 de estudos clínicos da vacina russa Sputnik V no país à Anvisa até o final de setembro. Depois de aprovado, a previsão é que o início dos testes aconteça até o final de outubro”, anunciava o governo paranaense em 4 de setembro de 2020, logo após a publicação de um estudo com resultados preliminares publicado na revista científica The Lancet, que reconhece uma boa resposta imune dos participantes das fases 1 e 2.
Mas, naquele mesmo dia, o Tecpar já indicava que suas instalações precisariam ser ampliadas, o que empurrava uma eventual fabricação da Sputnik V no Paraná apenas para o segundo semestre de 2021. “Uma vez comprovada a eficácia nos testes, o que deve acontecer 60 dias depois do começo da imunização nos voluntários, haverá um novo pedido de registro na Anvisa para vacinação efetiva em território nacional. As primeiras doses serão importadas. Como o protocolo envolve transferência de tecnologia, num segundo momento haverá produção em território nacional por parte do Tecpar. A estimativa é de que isso ocorra apenas no segundo semestre de 2021”, informava o governo do Paraná, na época.
O diretor-presidente do Tecpar, Jorge Callado, explicava que, para a produção com transferência de tecnologia eram necessárias “adequações” nas plantas de fabricação. A frente parlamentar criada na Assembleia Legislativa para acompanhar as medidas de enfrentamento à pandemia também chamou atenção para o ponto: “Atualmente, o Tecpar não teria estrutura física para produção de doses em seu parque tecnológico. Seria necessária a construção de uma nova planta, multivacinas, cujo anteprojeto já foi protocolado junto ao Ministério da Saúde em busca de recursos para sua execução. A estimativa de custo desta obra giraria em torno de R$ 1,2 bilhão”, anotaram os deputados estaduais, no primeiro relatório do grupo, apresentado em dezembro.
A Gazeta do Povo pediu uma entrevista com Jorge Callado para entender os detalhes do recuo na negociação com os russos e se a ausência de estrutura física adequada teria interferido no processo, mas o Tecpar informou que, no momento, se manifestaria apenas através de nota. Por escrito, o Tecpar confirmou que os planos de investimento no Tecpar continuam de pé e que ainda “atua constantemente com a possibilidade de ser parceiro científico e tecnológico no desenvolvimento de vacinas, dentre elas contra a Covid-19”.
“Para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), o Tecpar, como laboratório público oficial, protocolou no Ministério da Saúde o pré-projeto para o desenvolvimento de uma planta multivacinas, com vistas a atender o Programa Nacional de Imunizações (PNI). A implantação poderá ser viabilizada pelo Ministério da Saúde, como forma de ampliar os fornecedores públicos de vacinas no país e dar mais autonomia no fornecimento ao Brasil”, respondeu o Tecpar à Gazeta do Povo, em nota.
Entre setembro e outubro, sem anúncio pelos canais oficiais de comunicação do governo do Paraná, não houve protocolo de validação da fase 3 submetido à Anvisa e nem o início dos testes. E, no final do ano, o governo estadual já adotava outro tom sobre o tema das vacinas, dando ênfase à necessidade de seguir orientações do governo federal. “O sistema de imunização do País é conduzido pelo governo federal. Não é um laboratório que vai resolver a questão, mas vários laboratórios fornecendo as vacinas para os países. Não vamos fazer o paranaense ser cobaia. Vamos aplicar as vacinas cientificamente eficazes. Não serão vacinas políticas, mas com segurança para trazer a imunização necessária”, concluiu o governador do Paraná, Carlos Massa Ratinho Junior (PSD), em dezembro.
Embora não tenha acordo firmado com a União Química, o governo do Paraná agora tem repetido que permanece à disposição dos russos para executar os testes em voluntários. “Caso haja necessidade regulatória de realizar a fase 3 no país, o governo do Paraná coloca à disposição os hospitais universitários estaduais para prestar apoio a essa etapa”, informou o Tecpar à reportagem, nesta semana. No último dia 3 de fevereiro, a Anvisa confirmou que não fará mais a exigência da realização de testes na fase 3 no Brasil – ou seja, os russos poderiam utilizar os dados da fase 3 colhidos em outros países.
Procurada pela Gazeta do Povo, a União Química não informou se a fase 3 ainda seria realizada neste momento e quais parcerias pretende fazer para executar tal etapa: “Ressaltamos que o contrato de transferência de tecnologia da produção da vacina Sputnik V, entre RDIF, Instituto Gamaleya e União Química, estão sob guarda de acordo de confidencialidade” e “tão somente a Anvisa tem acesso a essas questões, em conformidade com a legislação brasileira e com as regras de conduta e código de ética da autoridade regulatória”.
União Química deve utilizar fábrica “flex”
Embora o governo do Paraná tenha anunciado em agosto a assinatura do Memorando de Entendimento com o RDIF, as negociações dos russos com a União Química foram se fortalecendo entre setembro e outubro. Naqueles meses, técnicos da União Química foram até Moscou conhecer a tecnologia de produção da vacina da Sputnik V. O encontro depois gerou a assinatura de um Contrato de Transferência de Tecnologia e Fabricação, em 13 de outubro de 2020. Em novembro, os russos já enviavam uma delegação de técnicos ao Brasil para examinar as instalações e a capacidade de produção da União Química. Ao final das conversas, o RDIF credenciou a União Química como representante do Instituto Gamaleya para produção da vacina Sputnik V no Brasil e na América Latina.
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O Grupo União Química tem 100% de capital nacional, atua há mais de 85 anos no Brasil e conta, atualmente, com oito unidades fabris: duas unidades localizadas em Minas Gerais (Pouso Alegre); três em São Paulo (Guarulhos, Embu-Guaçu e Taboão da Serra); duas no Distrito Federal (Brasília); e uma nos Estados Unidos da América, na Georgia. O destaque seria a unidade “Bthek”, inaugurada em 2017, em Brasília. De acordo com a União Química, a unidade possui uma linha de produção com tecnologia de “single–use”, quando o material usado na produção é descartado após o término de cada lote e o medicamento produzido não tem nenhum contato com o equipamento. Na prática, isso daria flexibilidade à fábrica, que poderia se adaptar mais rapidamente à produção de um novo produto.
A União Química prevê o fornecimento de aproximadamente 8 milhões de doses por mês quando a fábrica estiver operando em sua plena capacidade, já com as adaptações necessárias. Além disso, a União Química também fez um acordo para importar a Sputnik V: seriam 4 milhões de doses da vacina, com previsão de entrega até 30 dias após a aprovação do uso emergencial por parte da Anvisa. Um segundo lote seria entregue 30 dias após a chegada do primeiro lote, com mais 6 milhões de doses.
Ao Financial Times, nesta quarta-feira (17), o diretor-presidente do RDIF, Kirill Dmitriev, explicou que depende de fábricas em outros países para expandir a oferta de doses. Ou seja, a produção somente nas empresas russas limitaria a oferta. Dmitriev indicou que fábricas na China, na Coreia do Sul, na Índia e no Irã devem produzir doses suficientes para exportar a países terceiros e fábricas em países como Brasil e Sérvia devem atender à própria demanda doméstica.