Primeiro e até agora único deficiente visual a alcançar um cargo da magistratura, o ex-procurador do Trabalho Ricardo Tadeu Marques da Fonseca abriu as portas de seu gabinete para uma conversa com O Estado. Fonseca, que já teve o sonho de entrar na carreira adiado por uma banca de concurso em São Paulo – a qual justificou que ele não poderia ser juiz por ser cego -, foi nomeado na última semana pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para o cargo de desembargador do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 9.ª Região. Entre outos assuntos, o desembargador relata suas expectativas em sua nova função. Casado e pai de duas filhas, ele, que teve uma atuação destacada como membro do Ministério Público, também fala sobre como o seu poder de superação e o apoio de familiares e amigos foram fundamentais para sua ascensão profissional.
O Estado – Como o senhor ficou cego?
Ricardo Fonseca – Perdi a visão por causa do agravamento de uma doença originária do nascimento prematuro. Nasci aos seis meses de gestação e aos 23 anos acabei perdendo totalmente a visão por causa de um agravamento chamado retinopatia da prematuridade.
OE – De que forma o fato de ainda jovem ter ficado cego mudou sua vida?
RF – Aprendi que todos nós somos dependentes reciprocamente uns dos outros. Os meus colegas me ajudaram muito na faculdade. A minha mulher, que na época era minha namorada, deu um apoio emocional que foi fundamental, assim como a minha família. Ou seja, eu fui amparado devidamente por um grupo social que ia desde os meus colegas até a minha esposa.
OE – Ter perdido a visão seria mais uma barreira ou um fato motivacional para o sucesso da sua carreira profissional?
RF – As duas coisas. Ao mesmo tempo em que foi um obstáculo, que me assustou, me motivou a lutar. Primeiro, eu passei a levar mais a sério a escola e a vida. Foi tanto um obstáculo quanto uma alavanca.
OE – Qual é sua expectativa para sua nova função?
RF – O direito do trabalho em geral sempre me atraiu muito. Estou muito feliz agora por ser um juiz. Porque eu já fui advogado, já fui do Ministério Público e agora ocupo a magistratura. Então eu já ocupei todas as posições que alguém pode ocupar na Justiça do Trabalho e isso me orgulha muito.
OE – Como o senhor foi recebido pelos seus novos assessores e pelo TRT9?
RF – Eu agradeço ao Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região, que sempre foi uma corte de vanguarda no Brasil, séria e respeitada pelos seus entendimentos. A indicação pelo tribunal ao presidente Lula muito me honrou. O fato de eu estar aqui hoje é motivo de orgulho e de felicidade.
OE – Atualmente, quais são os assuntos mais comuns que passam pelo seu gabinete? Há algum assunto que mais lhe preocupa?
RF – Eu sou muito novo aqui ainda. Estou chegando agora e não posso dizer quais são as matérias mais incidentes. É a primeira semana de trabalho. Estou tomando pé das coisas administrativamente ainda e não dá para afirmar nada sobre isso.
OE – O senhor publicou recentemente um artigo sobre assédio moral, assunto que há algum tempo não era muito difundido, tanto para trabalhadores como para as empresas. Ainda falta uma orientação para a população sobre o assunto?
RF – Sim, falta. O assédio moral é uma figura que foi discutida nos anos 90 pela primeira vez por uma psicóloga francesa chamada Marie France Hirigoyen, que contextualizou o desvio que é o assédio moral. É claro que o empregador exerce sobre o empregado um poder, legitimamente reconhecido pela lei. Trata-se de um poder diretivo das atividades profissionais desse trabalhador. Mas muitos confundem esse poder diretivo com um poder pessoal e acabam afetando a autoestima, a dignidade e a autoimagem do trabalhador com palavras agressivas, com gestos ofensivos ou com métodos que acabam expondo as pessoas que não tê,m um desempenho esperado. Isso, desde 1988, passou a ser defendido no Brasil porque o direito se volta à defesa da personalidade, desde então. E a personalidade, a dignidade e a autoconfiança do trabalhador não podem ser abaladas pelo poder diretivo do empregador. Quando esse exercício se desvirtua e agride o trabalhador, isso se caracteriza como assédio moral.
OE – O Poder Judiciário tem se envolvido na resolução dos problemas trabalhistas que dizem respeito a pessoas portadoras de necessidades especiais?
RF – Nós temos no Brasil uma ação afirmativa bastante rigorosa da lei que determina que empresas com mais de cem empregados contratem pessoas com deficiências em percentuais que variam de 2% a 5%, dependendo do número de trabalhadores da empresa. E também a Constituição determina que a administração pública reserve vagas nos concursos públicos para essas pessoas. No entanto, embora essas leis sejam bastante antigas, o Brasil ainda está um pouco longe de atingir todo o público alvo, ou a população com deficiência que seria economicamente ativa. Mesmo assim, houve grandes avanços. Segundo as últimas estatísticas do Ministério do Trabalho, nós já temos 348 mil pessoas com deficiência empregadas na esfera privada. No setor público esse número também vem crescendo progressivamente.
OE – O que ainda precisa ser melhorado nesse sentido?
RF – Eu acho que é uma questão cultural. As pessoas precisam aprender a ver na diversidade humana uma riqueza, não uma falta de força. As pessoas com deficiência têm eficiências que podem ser descobertas, desde que se propicie o método e o instrumento adequados para isso. É uma questão cultural. No Brasil as pessoas com deficiência são isoladas em guetos institucionais e isso precisa ser mudado.
OE – Isso seria uma questão de preconceito?
RF – Não acho que é uma questão de desconhecimento social. É cultural.
OE – Quais as dificuldades que o senhor, como deficiente visual, encontrou durante a sua ascensão profissional?
RF – Todas. Era muito difícil trabalhar em empresas, apesar de o meu currículo ser diferenciado. Era muito comum eu ser convocado pelo currículo e, na hora da entrevista, era barrado pela falta de visão. Isso aconteceu em concursos públicos. Mas, de qualquer forma, eu continuei lutando. Eu sinto que a geração mais nova de pessoas com deficiência visual, hoje, tem muito mais independência do que eu tinha, porque estão mais afeitas a lidar com programas de voz, com os quais eu mesmo ainda não aprendi a lidar. Vou aprender agora, no tribunal.
OE – Como é a sua rotina de trabalho? Como o senhor delibera o trâmite dos processos?
RF – Normalmente os meus assessores leem para mim o que está nos autos e eu decido a partir dessa avaliação oral. Eu vou ter uma pessoa designada exclusivamente para ser o meu leitor. E, paralelamente, eu estou treinando a utilização de programas de sintetização de voz em computadores porque há uma tendência de os processos serem todos digitalizados nos próximos dois ou três anos. Então eu penso que, com um pouco de prática, terei mais autonomia também.
OE – Qual é a mensagem que o senhor deixa para as pessoas que têm a mesma limitação que a sua, ou outras necessidades?
RF – A condição humana é, em si, uma condição de deficiência. Mas essa condição também carrega em si um poder de superação das limitações. Então a gente tem que confiar nesse potencial humano que todos nós temos.