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 Foto: Aliocha Maurício

Em Mandirituba, na Grande
Curitiba, chácara abriga meninos
que viviam nas ruas.

O número de pessoas morando nas ruas de Curitiba cresceu nos últimos tempos. Apesar de não haver estatísticas oficiais sobre o assunto, é só andar pelas ruas da cidade depois do entardecer para ver a quantidade de crianças, adolescentes e adultos dormindo pelas calçadas, reunidos em praças e se drogando.

Na esquina das ruas 24 de Maio e Doutor Pedrosa, no centro da cidade, um grupo de crianças e adolescentes se reúne diariamente. Há dias em que são mais de 30, nas proximidades da igreja do Bom Jesus. Quem se atreve a se aproximar, acaba chocado com a cena triste. São jovens totalmente drogados, que mal falam coisa com coisa, deitados na calçada, cheirando cola ou alucinados pelo crack. Felipe (nome fictício), de 23 anos, estava entre eles. Morando há cinco anos nas ruas, ele diz que não tem família nem conhece a mãe. Sem emprego, ele não se constrange em dizer que rouba para comer e comprar drogas. "Ninguém dá oportunidade para a gente. A FAS (Fundação de Ação Social) não faz nada de bom. Não adianta nada levar a gente para tomar uma sopa e trocar de roupa. Tem que dar uma chance para trabalhar", diz.

Mas não são apenas os sem-família que acabam na rua. Cláudio (nome fictício) tem 24 anos e há 10 vive entre a rua e a casa dos pais. Viciado em drogas, nunca trabalhou na vida. Concluiu o ensino médio e até chegou a começar um curso superior de administração. "Não me dou bem com os meus pais. Prefiro ficar na rua."

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As mulheres também não escapam. Fernanda (nome fictício) mora desde os cinco anos na rua. Hoje tem 15. Não vai para a escola e cheira cola e tínner. "Não tenho pai nem mãe. E tenho que roubar para viver", conta.

Oportunidades

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Numa outra realidade dos moradores de rua estão os alcoólatras. Geralmente mais velhos, eles perderam a família ou vieram tentar a vida em Curitiba e acabaram sem nada. Muitos se reúnem na Praça Tiradentes, no centro, onde diariamente é servido um sopão de graça. João Carlos Mocelin, 42 anos, vive há 22 na rua. Bebe todos os dias e se diz cansado em não ter oportunidades de mudar de vida. "Estou pensando em partir para o mundo do crime, pegar uma arma e sair assaltando porque eles (o governo) não ajudam em nada", diz.

Outros são mais conformados com a situação de miséria, como Ladislau Domanski, 59 anos. Vivendo há seis anos na rua, ele tem família e filhos, mas não fica em casa porque a família se nega a ajudá-lo por causa do vício da bebida. "Já fui para os abrigos da FAS, já fiquei internado em hospital psiquiátrico, mas não consigo largar da maldita", conta. Para sustentar o vício, Domanski faz artesanato: cata latinhas de bebidas e as transforma em miniaturas. Vende cada peça a R$ 1. Com o dinheiro, compra cachaça. E depende da caridade alheia para ter o que comer.

Ampliar rede de proteção é prioridade

A diretora de proteção da Fundação de Ação Social (FAS), Ana Maria Macedo, disse que percebeu o aumento no número de pessoas vivendo nas ruas de Curitiba. "Podemos perceber isso através dos atendimentos que fazemos. Mas é impossível quantificar exatamente estas pessoas. Além disso, é preciso olhar com cautela este crescimento porque ele é sazonal. Estamos no verão, teve Carnaval, houve mudança nas administrações municipais. Tudo isso contribui para este aumento", avalia.

Apesar disso e preocupada com a situação na cidade, a FAS está trabalhando para aumentar sua rede de proteção social, formada por albergues, casas de abrigo e comunidades terapêuticas. Segundo Ana Maria, todas as entidades que atendem moradores de rua e pessoas em situação de risco estão lotadas, atendendo além da capacidade. "Por isso, faz parte dos planos do novo prefeito ampliar este rede nos primeiros 180 dias de governo", afirma.

Hoje, a rede de proteção da FAS é formada por 74 instituições, entre órgãos oficiais e entidades conveniadas à Prefeitura. A capacidade de atendimento é para 1,7 mil pessoas.

Além disso, a Fundação realiza um trabalho de abordagem pelas ruas da cidade, para tentar retirar essas pessoas das ruas. No ano passado, o Resgate Social, o programa Criança em Segurança e a Casa da Acolhida e do Regresso atenderam 22.917 pessoas. No entanto, a FAS alerta que esse número não representa diretamente o volume de moradores de rua atendidos. Ana Maria explica que a FAS presta também atendimentos a pessoas em situação de risco, população migrante e itinerante.

Censo

A pedido do Ministério do Desenvolvimento Social – que está promovendo um censo nacional de meninos de rua -, a FAS está realizando um levantamento para saber a quantidade de meninos que vivem nesta situação em Curitiba. De acordo com Ana Maria, a Fundação recebeu o pedido na semana passada e tem de apresentar as informações solicitadas até o início de março. "Através dos atendimentos prestados pelos programas da Prefeitura poderemos ter uma noção da quantidade de meninos nas ruas", declara. (SR)

Chácara dá oportunidade de mudança

A chácara Meninos de Quatro Pinheiros, em Mandirituba – Região Metropolitana de Curitiba – trabalha há 12 anos com meninos que vivem nas ruas. Filiada à rede de proteção social da FAS, a chácara tem capacidade para abrigar 80 crianças e adolescentes, de seis a 18 anos.

Fernando Francisco de Gois, coordenador do local, diz que a instituição está atendendo além de sua capacidade máxima. Hoje existem 86 meninos morando lá, sendo que, diariamente, a chácara recebe cerca de 30 solicitações de vagas para novos meninos que estão nas ruas ou em situação de risco. Nos próximos dias, a instituição vai inaugurar uma república em Curitiba, onde irão morar 20 meninos que trabalham na capital e que estão na faculdade. Dessa forma, até o fim de 2005, a chácara espera estar atendendo pelo menos 100 meninos.

"A procura tem crescido a cada dia e a situação dos meninos de rua está cada vez pior. Quando eu comecei a fazer abordagens nas ruas, em 1984, a quantidade de meninos nesta situação era bem menor e não se encontravam crianças tão novas vivendo nas ruas. Hoje, têm meninos de cinco anos e até menos vivendo desta maneira, sem falar do estrondoso crescimento. A situação é preocupante, alarmante", afirma.

Só vão para a chácara aqueles meninos que são convencidos nas abordagens de rua. Gois explica que não se pode obrigar as crianças a irem morar lá. Por isso, é feito um trabalho de convencimento. As crianças que aceitam, vivem na chácara, separadas em cinco casas-lares, chefiadas por educadores sociais. Além de terem um lugar para comer e dormir, os meninos têm aula de informática, música, biblioteca, esportes. Todos vão para a escola e recebem tratamento médico, odontológico e psicológico.

Afastados da cidade, os meninos têm um contato maior com a natureza, com os animais, ficam longe das drogas. Gois afirma que 99% destes meninos vêm de família formadas por pais alcoólatras. Outros convivem com o problema da aids e há, ainda, aqueles que têm os pais na cadeia. "A vida desses meninos é marcada por tragédias. Sempre tem um assassinato na família, o pai que mata a mãe, a mãe que mata o pai. Se não é isso, o irmão é preso ou é assassinado", conta Gois. Por essas razões, o retorno desses meninos para suas família é mínimo. O que a chácara procura fazer é dar condições suficientes para que eles consigam levar uma vida digna, sem precisar do pai ou da mãe.

Pedro (nome fictício) tem 14 anos e há quatro meses está na chácara. Ele já esteve morando no local outras três vezes mas, em todas elas, acabou fugindo. Morando na rua desde os 10 anos, Pedro cheirava cola e era viciado em crack. Filho de mãe alcoólatra, acabou na rua porque apanhava demais. "Um dia quebrei um espelho que minha mãe gostava. Fiquei com medo da surra que ia levar e fui morar na rua", conta.

A fome, o frio, o vício e as más influências levaram Pedro a cometer pequenos crimes. Num dos assaltos, acabou preso. Desta vez, ele diz que decidiu mudar de vida. Está gostando de morar na chácara, largou das drogas e voltou para a escola. Está na terceira série. "Me arrependo das coisas que eu fiz. Hoje quero ficar aqui, estudar, fazer cursos. Meu sonho é ser médico", diz. (SR)

De moradora de rua a líder comunitária

A dona-de-casa Eva Rosane Vieira, 40 anos, é um exemplo de uma ex-moradora de rua que conseguiu dar a volta por cima. Quem vê o trabalho que ela realiza como líder comunitária no Jardim Alegria, em São José dos Pinhais, não imagina a vida dura e marcada por tragédias que teve.

"Meu pai e minha mãe eram alcoólatras. Nasci e me criei debaixo do viaduto do Capanema. Meu pai batia na minha mãe, eles tinham brigas terríveis. De tanto ver isso, perdi o respeito por eles e, com 12 anos, fui morar na rua com a minha irmã mais nova", conta.

Não demorou muito para que Eva começasse a usar droga. Ficou viciada em cheirar cola e tínner. Mendigava nas ruas para ter o que comer e dormia no mato. Aos 13 anos, foi estuprada por três homens. "Eles me machucaram muito e meu pai, quando me viu daquele jeito, me bateu mais ainda. Depois disso fui trabalhar na casa de uma família e, com 16 anos, conheci um rapaz e fui viver com ele", conta.

Quando pensou que sairia daquela vida, Eva percebeu que estava cometendo o mesmo erro dos pais. Com 20 anos tinha três filhos e, tanto ela quanto o marido, bebiam muito e brigavam. "Ele batia em mim e eu batia nele. Numa dessas brigas peguei uma faca e acabei matei meu marido".

Eva fugiu para não responder pelo crime e acabou perdendo o pátrio-poder dos três filhos. A tragédia fez com que ela voltasse para as ruas e se afundasse no alcoolismo. No entanto, a sorte dela mudou quando conheceu o atual marido. Ele lhe deu forças e a tirou das ruas. Com ele tem quatro filhos e há 10 anos foi procurar a Justiça, para reencontrar suas outras três crianças. "Quando procurei a Justiça, tive que responder pelo crime que cometi. Fui julgada e presa. Fiquei um mês na cadeia. Meu advogado recorreu e fui absolvida. Mas meus filhos eu não encontrei mais", diz.

Hoje, entre as palestras que dá no clube de mães que montou em sua própria casa e o sopão que prepara e distribui – três vezes por semana -, Eva só pensa em fazer de tudo para orientar aqueles que estão vivendo nas ruas ou são dependentes de drogas, como ela foi um dia. "Antes de tudo, é preciso ter força de vontade para sair desta vida. Mas nada adianta se não tiver alguém que dê apoio. É isso que tento fazer, escutar e apoiar aqueles que são totalmente desprezados pela sociedade", conta. (SR)