Em Curitiba, uma casa de apoio fundada há dez anos e que sobrevive com recursos do município dá abrigo, assistência psicológica e social a mulheres vítimas de violência doméstica. A maioria das mulheres encaminhadas ao local fugiram de casa carregando os filhos com medo de serem agredidas por seus maridos ou companheiros, que hoje não fazem idéia de onde elas se encontram. Em conseqüência disso, o nome destas moradoras deve ser mantido em segredo, assim como o nome e a localização da casa que lhes dá apoio.
Atualmente, vivem na casa dez mulheres. Segundo a gerente do local, que também não pode ser identificada, elas geralmente chegam só com a roupa do corpo, bastante abaladas emocionalmente e trazendo com elas crianças pequenas e assustadas, que muitas vezes não entendem direito o que está acontecendo. “São trazidas pela Delegacia da Mulher, pela Fundação de Ação Social (FAS), por unidades de saúde e conselhos tutelares”, explica.
Cuidados
Ao entrarem na casa, as mulheres recebem roupas e alimentação. São encaminhadas a tratamento médico, apoio psicológico e assistência social. Para não ficarem ociosas, geralmente se tornam responsáveis por algum tipo de serviço doméstico dentro do lugar.
“As mulheres têm um prazo de noventa dias para reorganizarem suas vidas e deixarem a casa”, conta a gerente. “A maioria delas, com o apoio que recebe, consegue se reestabelecer. Também cuidamos das crianças, que geralmente não podem voltar a suas escolas porque estas ficam próximas ao lugar onde vivem seus pais ou padastros. Providenciamos para que elas sejam, o mais rapidamente possível, matriculadas em escolas próximas à casa de apoio.”
Dramas parecidos
As histórias de vida das mulheres que passam pela casa costumam ser muito semelhantes. A maioria delas conta que casou ou se juntou com um homem que, depois de um tempo, fazendo ou não uso de álcool e outras drogas, começou a ameaçá-las verbalmente. Passado um tempo, os insultos verbais tornaram-se agressões físicas e mesmo ameaças de morte, inclusive aos filhos e demais familiares.
B.E., de 34 anos, fugiu de casa há cerca de um mês, junto com os dois filhos pequenos. Ela aproveitou um dia em que o marido saiu de casa para ir ao bar beber, levando um dos filhos em companhia, para fugir com a criança que ficou sob seus cuidados. No dia seguinte, após procurar apoio na FAS, deu um jeito de retornar ao bairro onde morava e pegar o outro filho na porta da escola antes que seu marido fosse buscá-lo.
B.E. casou há quatorze anos. Nos últimos doze, foi vítima constante de espancamentos. O marido alcoólatra nunca a deixava em paz e sempre que bebia a agredia. Com medo que B.E. o denunciasse à polícia, não a deixava trabalhar nem se afastar muito de casa sozinha. “Perdi o contato com meus parentes, amigos e vizinhos. Quando cheguei à FAS, uma das primeiras coisas que me perguntaram era se eu tinha alguma pessoa que pudesse me acolher e ajudar. Minha resposta foi negativa e, nesse momento, me dei conta de que estava totalmente sozinha no mundo com meus filho”, lembra.
A moça conta que demorou doze anos para denunciar o marido em função dos filhos. O homem espancava-a, mas era amoroso com as crianças e nunca deixava que estas passassem fome. Porém, nos últimos meses, a situação mudou e os filhos de B.E. também passaram a ser vítimas do pai, vivendo assustadas e com medo. Esta foi a gota d”água para ela. “Enquanto o problema era só comigo eu agüentava, pois acreditava que meu marido era um bom pai e que tudo estava bem com as crianças”, lembra. “Entretanto, quando vi meus filhos sendo agredidos cheguei ao meu limite: resolvi abandonar meu marido e procurar uma forma de reconstruir minha vida junto com as crianças. Para mim, felicidade seria saber que meu marido morreu, pois só assim o medo que sinto dele acabaria.”
Ameaça de morte
É com mágoa que J.R., 27, mostra uma cicatriz entre os dedos polegar e indicador da mão direita. A todo momento, o sinal está presente para lembrá-la de uma das muitas vezes em que o companheiro tentou matá-la. “Ele pegou uma faca e veio para cima de mim. Na tentativa de me defender, tentei pegar a faca da mão dele e acabei me cortando”, conta. Ao recordar, J.R. fala baixinho e tem sempre os olhos voltados para o chão, demostrando que as cicatrizes que o marido deixou em sua alma são muito mais profundas que o corte que lhe aparece não mão.
Mãe de três filho, J.R. passou os últimos seis meses na companhia do homem que a agredia. Este usava drogas e realizava assaltos. A mulher perdeu a conta do número de vezes em que foi agredida verbalmente, espancada e mesmo ameaçada de morte. “Eu não conseguia fugir e evitar que ele me batesse. Os vizinhos escutavam e sabiam de tudo, mas todos tinham medo de meu companheiro e ninguém fazia nada para me defender. Meus filhos, embora não apanhassem, viviam constantemente assustados”, diz.
J.R. não tem pai nem mãe. Ela sabe que alguns de seus irmãos vivem no estado de São Paulo, mas há muito tempo perdeu contato com eles. Resolveu abandonar o companheiro quando realmente percebeu que este não hesitaria em matá-la. “Ele me impedia de trabalhar e dizia que a vida dele era difícil porque tinha que sustentar a mim e às crianças. Descarregava suas frustrações me agredindo. Quando ele tentou me esfaquear, me dei conta de que ele era realmente capaz de acabar com a minha vida”, diz.
Apesar da coragem que teve para fugir, J.R. tem muito medo que o marido a encontre. Ela tem certeza de que se isto vier a acontecer seu único destino será a morte. “Se me pegar, ele me mata na hora, sem nem pensar duas vezes”, afirma. “Tenho certeza disso. Agora, a única coisa que quero é arrumar um emprego e reconstruir minha vida. Não quero vê-lo nunca mais.”
