(Repórter) – Você sabe quem vende Cytotec por aqui?
(Ambulante) – Para quem que é o remédio?
(Repórter) – Pra mim mesma.
(Ambulante) – De quantos meses você está? Quantos comprimidos vai querer?
(Repórter) – Um mês. Acho que dois são suficientes…
(Ambulante) – Todo mundo toma quatro, você precisa tomar quatro. Espera aí que eu já vou conseguir pra você.
Aliocha Maurício / GPP |
Momento da negociação: atravessadora ignora intenso movimento no local continua após a publicidade |
O diálogo acima aconteceu no lugar menos suspeito possível: na Rua da Cidadania Matriz, na Praça Rui Barbosa, no centro de Curitiba. Uma volta pelas centenas de boxes reunidos no local e pronto: o flagrante acontece. São vendidos ali, pelos camelôs, comprimidos falsos de Cytotec – medicamento para úlcera proibido no Brasil por ser abortivo, mas que é trazido falsificado do Paraguai e vendido descaradamente no centro da cidade.
Uma ambulante faz o papel de atravessadora entre a fornecedora do remédio e os compradores. Tudo muito discreto para não levantar suspeitas. De preferência, a transação é feita no banheiro feminino, para evitar flagrantes.
Cobrando R$ 50 por comprido, ambulantes faturam em cima do desespero de mulheres, bastante jovens na maioria, que se descobrem grávidas e decidem abortar a criança, por diferentes razões. Quando o país acaba de concluir um trabalho realizado por uma comissão tripartite que visa descriminalizar o aborto no Brasil e acabar com a exposição das mulheres a este tipo de situação, é possível enxergar no flagrante registrado no centro de Curitiba, o perigo a que estão expostas centenas de mulheres que acabam recorrendo a medicamentos falsificados para interromperem a gravidez.
Usado para o tratamento de úlcera, o Cytotec começou a ser vendido no Brasil nos anos 80s, sem restrição médica. Mas o medicamento causava fortes contrações no útero, provocando abortos. Por isso, passou a ser usado por mulheres que não queriam ser mães. Em 1998, o Ministério da Saúde baixou uma portaria (344) para conter o uso indiscriminado do medicamento. Só os hospitais podiam usar a droga.
De acordo com a Anvisa, em 2003, o laboratório Pfizer, que distribuía o produto no País, deixou de comercializar o remédio e cancelou o registro do mesmo junto ao órgão. Os hospitais que realizam os abortos permitidos por lei – quando a mãe corre risco de vida ou engravidou depois de um estupro – passaram, então, a usar um outro remédio, o Prostoks, que também contém o mesmo princípio ativo do Cytotec: o misoprostol. Desde então, todo Cytotec vendido no Brasil é contrabandeado e, muitas vezes, falsificado. Como não passa pelos testes da Vigilância Sanitária, não se sabe a procedência destes medicamentos.
De acordo com Jackson Rapkiewicz, farmacêutico do Centro de Informação sobre Medicamentos do Conselho Regional de Farmácia, o Cytotec encontrado em Curitiba vem geralmente do Paraguai. "É o que escutamos dizer, mas é impossível saber a procedência real destes medicamentos, assim como não dá para saber se eles têm os componentes que dizem ter", explica o farmacêutico.
Segundo Rapkiewicz, estes comprimidos de Cytotec são feitos, na maior parte das vezes, em laboratórios de fundo de quintal. O problema que isso causa é que o medicamento pode não ter a ação prometida, levando muitas mulheres que não conseguem êxito com o comprimido a provocarem abortos com agulhas de tricô, crochê ou outros objetos pontiagudos. Em outros casos, a medicação falsa pode causar efeitos adversos, hemorragias muito fortes e que podem até matar.
Sites divulgam guias de uso do Cytotec
A internet é um terreno fértil e muito perigoso para quem busca informações ou ainda tenta comprar Cytotec para causar abortos. Existem centenas de anúncios divulgando a venda de comprimidos, a maior parte deles vindos da Europa e vendidos a preços bem salgados: de R$ 200 a R$ 400 o "kit" com quatro comprimidos e manual de instruções. Outros sites trazem verdadeiros guias, ensinando passo a passo como usar o remédio, como proceder depois. Há dicas até de qual desculpa usar para conseguir medicamentos com o mesmo princípio ativo do Cytotec regularmente nas farmácias.
A estudante de direito Michele (nome fictício) também foi buscar na internet informações sobre o Cytotec quando resolveu fazer um aborto, há dois anos atrás. "Só sabia que uma amiga de uma amiga havia usado e deu certo. Mas era só. Ninguém explicava o que o medicamento poderia causar, não havia nada de objetivo", conta. O namorado de Michele conseguiu os comprimidos de Cytotec com um amigo que trabalhava numa farmácia e ela usou como a maioria usa: tomou dois comprimidos e introduziu outros dois na vagina. Horas depois as cólicas começaram, a hemorragia também e ela foi parar num hospital. O saldo da aventura foi uma curetagem e um trauma que ela diz que vai carregar para o resto da vida.
Para tentar se livrar do "fantasma" do aborto, Michele criou o blog "Cytotec NÃO é solução" (http://cytotec.blogspot.com/) na internet. Ali ela conta a experiência que teve e sem tomar partido, de ser contra ou favorável ao aborto, ela procura dar informações para outras meninas que querem tomar o remédio e interromper uma gravidez não desejada. "Recebo centenas de emails, na maior parte de meninas muito jovens, de 15 a 19 anos. O que procuro dizer é que tomar Cytotec é como uma roleta russa: ninguém sabe o efeito que ele vai causar, cada mulher reage de uma forma e o risco é muito grande. É preciso estar ciente disso", afirma.
Michele conta que a história mais absurda que ouviu pelos contatos que tem na web foi de uma menina que comprou pela internet o "Ciclo do Cytotec": 12 comprimidos de Cytotec e um kit curetagem para fazer em casa. As instruções do vendedor eram para que a menina tomasse um comprimido e introduzisse um na vagina no primeiro dia, aumentando gradativamente o número de comprimidos no decorrer de uma semana, até acabar. Depois disso, usar o kit curetagem para "limpar o útero". "Foi a história mais terrível que escutei. A menina me escreveu desesperada porque estava com tanta hemorragia que já estava urinando sangue", conta Michele.
Para se ter um idéia da potência do Cytotec, os hospitais que fazem abortos permitidos por lei, usam oito comprimidos de Prostoks (que têm o misoprostrol, mesmo princípio ativo do Cytotec). Estes oito comprimidos de Prostoks já causam um aborto e são equivalentes a um quarto do comprimido de Cytotec.
Polêmica na discussão do tema
Uma comissão tripartite, formada por membros da sociedade civil, Poder Legislativo e Executivo Nacional, encerrou no início deste mês os trabalhos de revisão da legislação que proíbe o aborto no Brasil. O País segue a legislação de 1940, que apenas abre precedente para interrupção de gravidez resultante de estupro ou risco de vida para a gestante.
A comissão foi instalada em abril pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e teve como base de trabalho o dossiê "Mortes Preveníveis e Evitáveis", da Rede Feminista de Saúde. O trabalho, lançado em março desde ano, é o mais atual sobre o tema e foi realizado por duas pesquisadoras do Paraná – a enfermeira Alaerte Leandro Martins e a socióloga Lígia Cardieri Mendonça. O documento apresenta dados sobre aborto, entre 1999 e 2002, traçando um perfil sobre as mulheres que morrem vítimas da prática no país. A constatação foi de que o aborto inseguro reflete a injustiça social: a maior parte das vítimas são solteiras ou separadas judicialmente e negras.
Alaerte trabalha há 15 anos na coordenação de saúde da mulher da Secretaria Estadual de Saúde e é membro do comitê de mortalidade materna do Paraná. "O grande número de mortes causadas por aborto está ligado à falta de planejamento familiar, programas de saúde reprodutiva e também da legalização do aborto. Milhares de mulheres morrem porque são tratadas como criminosas por terem feito um aborto, mesmo que tenha sido espontâneo."
Segundo Alaerte, existe muita hipocrisia quando se trata deste tema. "Todo mundo sabe por quanto, onde e quem faz abortos em Curitiba. Com R$ 1,5 mil eles são feitos em clínicas clandestinas", afirma.
Legalidade
Desde 2002, Curitiba possui três centros de referência para atender mulheres vítimas de violência: Hospital de Clínicas, Evangélico e o Pequeno Príncipe. De acordo com Idalina Marly da Luz, enfermeira do serviço de pronto atendimento tocoginecológico do HC, todas as mulheres vítimas de estupro que procuram o hospital são informadas sobre o direito constitucional de realizar aborto em caso de gravidez. Desde o início do programa, foram realizados 10 abortos legais no HC. Idalina conta que um deles aconteceu este ano, em uma mulher de 42 anos que é casada e que havia sido estuprada. Sem saber da existência do serviço, a mulher tomou Cytotec e chegou ao HC encaminhada pelo Posto de Saúde para fazer o pré-natal. Depois de saber que tinha o direito de abortar, resolveu não ter a criança.
Crime
O médico cardiologista Laércio Furlan, presidente da Associação dos Médicos Espíritas do Paraná, é um fervoroso defensor da proibição do aborto. Para Furlan, desde o momento da fecundação, já existe vida e qualquer interrupção é crime. "O feto de três meses é um ser perfeito. O coração funciona, tem ondas cerebrais, ele possui toda a morfologia de uma criança, é uma vida. Ninguém tem direito de interrompê-la", afirma.