“Mulher não é para ser operacional”. Essa frase foi citada por cinco bombeiras e uma ex-policial militar entrevistadas pela reportagem da Gazeta do Povo, após o caso da bombeira Lilian Vilas Boas, 32 anos, vir à tona. Ela recebeu uma punição – ainda não cumprida – de oito dias de prisão no quartel por ter participado de um ensaio fotográfico sobre o empoderamento feminino. Todas já ouviram a frase de um colega homem ou superior que questionou o trabalho, mas não responderam para não serem perseguidas. Lilian irá recorrer da punição.
As soldados, chamadas de FEM dentro de quartel em alusão ao gênero feminino, relataram que a discriminação sobre a capacidade da mulher em realizar o mesmo trabalho que os homens na corporação militar ainda é resistente e reflete na prioridade da estrutura concedida a elas no dia a dia do serviço. Por medo, as bombeiras só falaram em condição de anonimato.
A ex-policial militar Tatiane Arcega, 33 anos, falou abertamente, pois deixou a corporação ao acreditar que seria excluída por ter feito fotos sensuais em concurso de clube de coração, o Coritiba. Ela foi candidata à musa do Campeonato Brasileiro entre 2008 e 2009 e abandonou a PM em 2010, após ser levada ao Conselho de Disciplina, onde seria julgada. Ela, que atualmente é bancária, pediu para sair da PM porque até aquele momento queria ingressar na carreira de oficial da corporação, o que não poderia ocorrer se ela fosse excluída. “Até hoje sinto saudade de trabalhar lá”, contou.
“Mulher operacional é quase proibido dentro da polícia. A maior parte delas ainda trabalha internamente”, disse Tatiane. A ex-soldado mencionou ainda que o assédio sexual é uma dos maiores problemas que as mulheres sofrem dentro do quartel. “Uma vez um oficial perguntou se eu queria passar um fim de semana em um hotel fazenda com ele. Eu não dei bola. No outro dia fui transferida”, contou Tatiane.
Essa questão também foi mencionada por duas das cinco bombeiras que falaram com a reportagem. As outras afirmaram que receberam cantadas, mas acham natural ouvi-las e ter de ignorá-las. “Faz parte do dia a dia dentro do quartel e fora dele”, disse uma delas.
Uma bombeira, que trabalha na Região Metropolitana de Curitiba, de 33 anos, reclamou das condições de trabalho. Falta alojamento em seu grupamento. O nome da unidade não será revelado também para não expô-la, já que não há muitas mulheres onde ela trabalha.
“Falta tudo. Não tem banheiro para mulher. Quando preciso descansar no plantão, tenho que ir no alojamento masculino. Aviso eles para não andarem nus. Lá tem chuveiro e sanitário. Uma vez ouvi do comandante que mulher não combina com quartel”, explicou a bombeira. Segundo ela, quando o homem não faz o serviço direito não acontece nada, mas se for mulher, é um “furdunço”.
A PM foi procurada no final da manhã de quarta-feira (27) para se pronunciar sobre estrutura da corporação e sobre as situações mencionadas pelas entrevistadas. Até agora não houve retorno.
Lilian sofreu punição, ainda não cumprida, por ter participado de um ensaio fotográfico sobre o empoderamento feminino./Foto: Reprodução/Facebook |
Lilian não foi a primeira bombeira a ser punida por foto
Além de Lilian e a ex-PM Tatiane, outra bombeira, 28 anos, també,;m foi punida por um ensaio fotográfico sensual que fez para colocar na parede de seu quarto em 2014. O fotógrafo, na época, teria vazado as fotos em sua rede social e acabou expondo o caso. A imagem circulou pelos quartéis do estado inteiro e o caso virou um procedimento igual ao de Lilian, um formulário de apuração de transgressão disciplinar.
Ela, no entanto, cumpriu seis dias de prisão. A reportagem entrou em contato com a bombeira, que também preferiu não falar sobre o assunto e pediu para não ter o nome revelado. No caso dela, no entanto, havia uma menção a profissão na imagem, já que as fotos eram para uso íntimo. Ela teria alugado um equipamento, como uma mangueira, de uma empresa pra fazer as imagens. Mesmo assim, foi punida.
Rigor militar e ingresso recente de mulheres na corporação reforçam machismo
A presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB Paraná, Sandra Lia Leda Bazzo Barwinski, afirmou que o machismo dentro das corporações militares é mais forte devido o rigor estabelecido na regulamentação interna das instituições. “Isso é próprio da cultura patriarcal – que embasa a sociedade atual. Quanto mais forte e rigorosa a legislação, mais repressão, autoristarismo”, disse.
Ela lembrou que a transgressão das regras é fundamental para a evolução dos direitos. “O rigor das regras não significa que elas não podem ser questionadas. É o direito a resistência, um espaço para se opor. Só a transgressão faz com que os direitos mudem”, explicou.
As mulheres começaram a ingressar na carreira de bombeira em 2005 no Paraná. Segundo a especialista, como a história das mulheres dentro do Corpo de Bombeiros ainda é muito recente, os homens encaram o quartel como um espaço de disputa de poder.
“Eles não querem e não aceitam perder um espaço para mulher”, explicou. Na avaliação dela, a falta de estrutura para as bombeiras acontece porque elas foram pensadas só para homens. “Ainda é novidade a presença feminina e não houve uma acomodação, mas é aviltante local sem alojamento só para mulher”, disse.