A partir de hoje, a expressão “homem”, para designar cidadãos de ambos os sexos, deixa o vocabulário jurídico do País e passa a ser substituido por “pessoa”, enquanto que alcóolatras e dependentes de drogas passam a ser considerados incapazes. As modificações estão entre os 1.816 artigos do novo Código Civil, que começa a vigorar sem os capítulos sobre direitos de empresas, que só valerão daqui a um ano, e sem o artigo 374, revogado hoje por medida provisória editada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No total, o novo Código Civil é formado por 2.046 artigos que tratam de vários aspectos da vida civil dos brasileiros, e entra em vigor após 27 anos de tramitação no Congresso Nacional. Substituindo o Código atual, que foi redigido em 1917, o novo texto -que teve como relator o deputado Ricardo Fiúza (PPB/PE) introduz inovações importantes no regime de bens e casamento, na maioridade civil e em várias outras questões que afetam diretamente o dia-a-dia dos brasileiros, adequando-os às amplas mudanças por que a sociedade passou nesses 86 anos.
Para se ter uma idéia da revolução que ele significa, a maioridade civil é reduzida de 21 para 18 anos; acaba a necessidade de as assinaturas de documentos serem reconhecidas em cartório; as pessoas em débito com a Receita Federal poderão ter seus imóveis confiscados; e os condomínios residenciais poderão punir, inclusive com a expulsão, um morador com comportamento anti-social. Confira as principais mudanças:
No casamento, o novo Código estabelece a igualdade entre os cônjuges, extinguindo as expressões “chefe de família” e “pátrio poder”, que é substituída por “poder familiar”, igualando pais e mães. O pátrio poder dava ao homem a liderança da família e a responsabilidade sobre as decisões legais. O novo texto também acaba com a possibilidade de o marido anular o casamento caso a mulher não seja virgem – muita gente não imagina, mas esse dispositivo legal ainda encontra-se em vigor.
Mulheres e homens também passam a ser obrigados a se casar com separação total de bens só depois dos 60 anos. Pela legislação em vigor, o limite da mulher era menor: 50 anos de idade, enquanto o homem poderia casar-se em comunhão total até os 60 anos.
A igualdade entre os sexos também beneficia os homens: a mãe perde a preferência na guarda dos filhos com o fim do casamento – os dois cônjuges passam a ser igualmente considerados. Os maridos também passam a ter o direito de adotar o sobrenome das esposas. Um novo casamento, união estável ou concubinato da pessoa que recebe pensão alimentícia faz cessar a obrigação de o antigo cônjuge zelar por sua alimentação. Assim, acaba a estória da mulher separada que recebe pensão do antigo marido, tem um novo companheiro, mas não se casa para não perder o benefício. A união estável fica definida como um instituto intermediário entre o concubinato e o casamento.
Herança
Também é estabelecida uma nova forma para a divisão da herança, em partes iguais, entre pais, filhos e cônjuges. Hoje, têm direito à herança, na seguinte ordem, os filhos, os pais e, por último, o cônjuge. Os regimes de bens no casamento passam a ser cinco, em vez de quatro: comunhão parcial, relativa aos bens adquiridos em comum, excluídos os bens comprados com o dinheiro de apenas um cônjuge, mesmo que depois do casamento; comunhão universal, que envolve todos os bens presente e futuros, com poucas exceções; separação de bens, que permanecem sob a administração exclusiva de cada cônjuge; regime dotal, no qual os cônjuges estipulam em escritura antenupcial os bens que constituem o dote; e regime de participação final nos aqüestos, no qual cada cônjuge possui patrimônio próprio anterior ao casamento e tem direito, à época da dissolução da sociedade conjugal, à metade dos bens adquiridos após a união. As pessoas que se declararem pobres ficarão isentas das custas do casamento civil.
O novo Código também simplifica o ato de testar: o testamento particular poderá ser feito de próprio punho, bastando, para ser reconhecido, três testemunhas. Poderá ainda ser feito sem testemunha alguma, devendo, nesse caso, ser posteriormente confirmado por um juiz.
Pelo Código, a guarda dos filhos ficará com quem tiver melhores condições financeiras, inclusive parentes, como avós ou tios. O adultério, no entanto, continua sendo motivo para perder a guarda dos filhos na separação judicial, seja por parte do homem ou da mulher. A adoção de filhos poderá ser formalizada, desde que um dos cônjuges tenha completado 18 anos e seja comprovada a estabilidade da família. Além disso, podem adotar crianças todos os maiores de 21 anos, independentemente do estado civil. Acaba, também, a diferença entre a adoção plena e a restrita. Não há mais qualquer tipo de distinção entre filhos: os adotivos passam a ter os mesmos direitos dos legítimos e ilegítimos.
MP já tirou um artigo da lei
O capítulo sobre empresas, com 229 artigos, terão uma carência de um ano para sua aplicação, uma forma encontrada pelo Congresso para ganhar tempo e realizar algumas modificações em torno do texto atual. Uma delas é excluir a necessidade de as empresas publicarem todos seus atos em jornais ou diários oficiais, além de refazer praticamente toda a parte que trata sobre as sociedades limitadas.
Ontem o Código teve sua primeira baixa, com a publicação da MP 104, editada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para revogar o artigo que permitia a compensação entre dois devedores, incluindo dívidas tributárias. “Se o cidadão tinha uma dívida com o fisco, por exemplo, e o Estado ainda devesse a ele o imposto compulsório sobre os combustíveis, ele poderia abater seu débito”, explica o advogado Mário Luiz Delgado. Esta mesma MP já havia sido editada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, mas foi rejeitada pelo Congresso. A dúvida se deve ao fato de o Executivo estar revogando um artigo de uma lei que ainda não estava em vigor.”Pode até ser inconstitucional”, diz Delgado, lembrando que esse foi um dos motivos pelos quais a MP foi rejeitada no Congresso.
OAB reivindicava adiamento
(Agência Câmara e Lawrence Manoel)
O novo Código tem como objetivo consolidar as mudanças sociais e legislativas surgidas nas últimas décadas, incorporando outros avanços jurídicos. Mesmo assim, as críticas são numerosas. A principal delas é de que o texto já nasce defasado, pois não trata de temas surgidos na última década, como a clonagem, o uso de embriões pela ciência, a barriga de aluguel, a inseminação artificial e o comércio eletrônico.
No entanto, é importante ressaltar que o Código Civil não pode passar por cima da Constituição. Por isso, não há como respaldar situações mais complexas, como a união civil entre pessoas do mesmo sexo. O novo Código está sendo questionado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que pede o adiamento da sua vigência. Um grupo de juristas, que inclui ministros de tribunais superiores, também defende o adiamento.
O advogado Paulo Lins e Silva, especialista em direito da família, faz críticas nessa área. “O novo Código significa retrocesso em alguns pontos, como ao prever punição para o cônjuge que pratica adultério, e não avança em questões importantes, como os direitos dos filhos”. Lins e Silva apóia inclusive o adiamento por medida provisória. “O presidente Lula deveria interferir. Ele já avisou que não governará por medidas provisórias, mas, neste momento, é a única solução. Senão, a bomba vai estourar no colo do Judiciário, que terá uma lei novinha em folha sendo modificada sem parar”, prevê.
OAB-Paraná
Para o conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)-seção Paraná, Paulo Nalin, a vacatio legis, tempo de vacância para o código entrar em vigor deveria ser maior. Ela foi de apenas um ano, mas para o advogado deveria ser no mínimo dois anos. Segundo ele, o prazo para a entrada em vigor do código civil alemão foi de cinco anos.
Nalin lembrou que o antigo código também demorou apenas um ano para entrar em vigor. Foi concluído em 1916 e passou a vigorar em 1917. “Mas a época era outra e o País não tinha um código civil, daí a necessidade de urgência”, salientou. Ele disse que códigos com um único tema como o civil tendem a sumir. Ele citou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) como moderno, que em poucos artigos levanta vários problemas sobre vários assuntos.
Embora destaque que aconteceram avanços com o novo código, Nalin afirmou que sua existência é desnecessária. “A jurisprudência ao longo do tempo já resolveu muitos casos. Na década de 70, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou duas súmulas excluindo a expressão concubinato. Hoje o novo código fala novamente do assunto, fazendo voltar uma divisão em subclasse desnecessária”, afirmou.
O código já nasce com três projetos de lei tramitando no Congresso tentando mudá-lo”, destacou Nalin. O maior deles é de autoria do próprio relator deputado Ricardo Fiuza. Ele conta com alterações em cerca de 200 artigos, maioria no Direito Empresarial.
Adiamento
O relator Ricardo Fiúza rebate todas as críticas e considera o adiamento um crime contra a sociedade. “A necessidade de algumas atualizações é normal, não é motivo para adiar”.
Origem foi durante a ditadura
O novo Código Civil começou a ser elaborado em 1969, pelo governo militar, e iniciou sua tramitação no Congresso Nacional em 1975. Seu texto final foi aprovado em 15 de agosto de 2001, quando começou o período de transição fixado em lei. Embora tenha origem no antigo regime autoritário, o novo Código, no decorrer dessa longa tramitação, sofreu importantes mudanças.
Com a entrada em vigor do Novo Código Civil, o texto promulgado em 1.º de janeiro de 1917, deixa de vigorar. Na verdade, é um texto do século retrasado. “Seu anteprojeto foi elaborado no final do século XIX, em 1899, pelo jurista Clóvis Bevilacqua, tendo sido discutido no Congresso até o final do ano de 1915”, explica Ricardo Fiuza.
O relator do novo Código Civil lembra que foram muitas as tentativas de reformulação do Código Civil brasileiro, desde 1930, sendo que só em 1968 o Governo resolveu discutir sua reformulação, constituindo uma comissão coordenada pelo professor Miguel Reale, da Universidade de São Paulo.
Especialistas destacam ênfase ao aspecto social
Lawrence Manoel
O novo Código Civil foi elaborado com ênfase ao aspecto social, implementando tendências como a boa fé. Essa opinião é compartilhada pelos advogados Maurício Sprenger Natividade e Ubirajara Ayres Gasparin. O dois especialistas em Direito Civil acreditam que o código que entrou em vigência hoje é uma continuação do antigo, com alguns aperfeiçoamentos. Para eles, o código deu mais poder aos juízes, exigindo dos mesmos uma capacidade interpretativa maior e um embasamento social mais forte.
Para Gasparin o antigo código, até pelo fato do ambiente social em que foi criado (década de 10) era mais individualista. “Já esse novo busca mais uma socialização. Ele é mais flexível baseado em conceitos abertos”, explicou, citando como exemplo o Direito Contratual. Pela novo código pode-se dizer que a máxima de que “o combinado não é caro” não reflete a verdade absoluta. “Ele dá mais liberdade de interpretação. Os contratos protegem os interesses sociais. Num contrato onde fica claro que é cobrado juros de maneira abusiva, por exemplo, há a possibilidade de se reverter através de uma interpretação judicial. Desde que, é claro, seja comprovada a existência de uma injustiça pela falta de capacidade em pagar do interessado”, explicou Gasparin, destacando que os juizes possivelmente precisem de um tempo maior para se adaptarem ao aumento do poder.
O advogado apontou pontos perigosos na diminuição da idade da maioridade civil. “O lado positivo é o fomento na atividade econômica. Porém, o empresário passará a ver o trabalhador de 18 anos de maneira diferente. Isto pode tanto ajudar na redução da criminalidade, como retirar empregos de pessoas mais antigas e complicar o problema do desemprego”, explicou.
Natividade destacou que muitas modificações propostas no código já foram implantadas na Constituição Federal. “A Constituição é de 1988 e o código anterior de 1917, por isso ela já trouxe muitas inovações que agora estão em definitivo no novo código”, lembrou Natividade, destacando que o tempo de elaboração do código(desde 1968 até 2002), embora longo não o prejudicou, principalmente na questão do Direito Familiar. “Pela demora a discussão acabou não ficando só no parlamento e indo para a sociedade. Isso foi positivo”, disse. Ele salientou que códigos civis normalmente demoram muito tempo mesmo para serem concluídos.
No Direito de Propriedade os dois advogados citaram duas modificações consideráveis. A primeira o aumento nos prazos da usucapião e a outra o fato do código permitir desapropriação de terras feitas pelo Poder Judiciário. “Ele permite a desapropriação de áreas extensas ocupadas de boa fé, ininterruptamente por mais de cinco anos por um grupo considerável de pessoas que executaram nelas obras e serviços”, explicou Natividade, destacando que anteriormente só o Estado poderia desapropriar terras.
Alcoólatras e viciados tornam-se “incapazes”
(AE) – A população vai ter que se acostumar com os 1.816 artigos, já que a maior parte atinge diretamente o dia-a-dia. Como, por exemplo, a transformação do concubinato, que também era uma relação estável. Agora é taxada como união ilícita, vivida por amantes. Além disso, o artigo 4.º do Código faz uma inovação e eleva os “ébrios habituais” – os alcóolatras – e viciados em tóxicos como pessoas relativamente incapazes de praticar certos atos. Até mesmo os contratos ganharão nova interpretação, a partir de hoje. Aqueles que foram realizados com cláusulas conflitantes em desfavor ao aderente, podem ser revistos, já que se trata de uma norma de ordem pública. “O mesmo acontece em relação aos contratos feitos quando as pessoas estão em estado de necessidade. Pode rever o pagamento pago”, explica a professora de Direito Civil, Regina Beatriz Tavares da Silva. Neste caso, segundo ela, além da anulação do contrato, poderá gerar processo por perdas e danos. Para Regina Beatriz, que atuou na confecção da nova legislação, o Código trouxe duas novidades que não estão nos artigos: “Procuramos usar expressões mais próximas do povo e estamos tentando acabar com a chamada Lei do Gérson, onde alguns querem levar vantagem em tudo.”
Previdência
Ontem, o Ministério da Previdência Social, Ricardo Berzoini, confirmou que os pagamentos de pensões continuarão a ser feitas para as pessoas com idade entre 18 e 21 anos, mesmo que a maioridade civil tenha caído para os 18 anos.