Ela brinca com as palavras como se fosse uma criança a criar castelos de areia na beira-mar. Izabel Cristina Milano tem 36 anos, é poeta e é mendiga. Vestida com andrajos, guarda seus tesouros em uma grande mala azul, já deteriorada pelo tempo. Todos os seus valores estão ali: um par de tênis, um cobertor velho, muitos papéis, livros e uma máquina de escrever portátil, doada por crianças que faziam tratamento no Hospital de Clínicas. Foi num banco da Praia Central de Guaratuba que a Tribuna a encontrou. Estava a olhar o mar, observando as ondas e as pessoas que caminhavam na orla, em busca de mais uma inspiração. Ela sobrevive da venda de seus poemas, de pequenas páginas manuscritas ou datilografadas, unidas por um grampo. ?Quer comprar um livro de poesias??, pergunta aos passantes, em busca do sustento.
A história de Izabel faz qualquer um se arrepiar. Ela conta sua vida de pobreza e de esperança, pontuando com largos sorrisos que expõem os dentes estragados.
Mas nem isso consegue deixá-la feia. Bastam alguns minutos de conversa para surgir um mágico encantamento. Sua mãe morreu no parto. Ficou aos cuidados de uma madrasta até os 5 anos e então foi abandonada no Passeio Público, em Curitiba. Adotada pou um casal de mendigos, passou a viver nas ruas. Foi morar embaixo de um viaduto.
A mãe adotiva tratou de matriculá-la em escolas.
Como não tinham endereço fixo, a matrícula nunca era aceita. Até que resolveram ?descuidar? a conta de luz de uma casa do Capanema e apresentá-la como comprovante de residência. Deu certo. A menina mendiga começou a freqüentar aulas. Aprendeu rapidamente a ler e a escrever. Mas era uma arteira. Foi expulsa de alguns colégios e matriculada em outros.
Conseguiu cursar até a 8.ª série e desistiu de ir em frente. Hoje em dia, lê muitas poesias, principalmente quando se sente sozinha. Inclusive adora Fernando Pessoa, Manoel Bandeira e Cecíla Meireles. Faz deles seus companheiros na solidão.
Aos 8 anos já fazia poemas. Preenchia cadernos e cadernos com seus versos. Sempre que terminava um caderno, alguém tratava de surrupiá-lo. Ficou tão irritada que parou de escrever. Passou dez anos sem fazer uma rima.
Certa tarde, já com 18 anos, catando latinhas para vender, um novo caderno em branco lhe caiu nas mãos. Lembrou-se dos velhos poemas, reescreveu-os e tomou gosto.
Não parou mais. Quando consegue vender alguns livrinhos, dorme em um quarto de pensão. Se não tem dinheiro, fica na rua mesmo.
Arrojada, Izabel foi para Joinville (SC) participar de um encontro de poetas. Para voltar, conseguiu uma passagem de graça até Guaratuba e lá estava batalhando para retornar a Curitiba. Levou um susto quando tirou a velha Olivetti da mala azul, para registrar mais algumas poesias. Policiais a abordaram e ameaçaram apreender a máquina de escrever, porque ela não tinha ?licença? da Prefeitura para vender poemas.
Mesmo assim não se intimidou. De caneta em punho, prosseguiu nas escritas.
Dos poemas que fez, o que mais gosta é o Mendigo 1, que retrata a vida de quem está abandonado pela sorte. O segundo preferido é Corpo Noturno, dedicado à mãe adotiva, que também já morreu.
Seu sonho maior é conseguir publicar as poesias, fazer um livro de verdade, para vendê-lo e sair das pensões e das ruas.
?Qualquer ajuda é bem-vinda. Tem dias que passo até fome?, diz ela, salientando que quando tiver uma oportunidade para mudar de vida, seu sonho é ajudar outras meninas de rua.
?QG? no centro de Curitiba
Izabel também é conhecida como ?Gordinha? ou ?Tia Gordinha? e seu ?QG? fica na movimentada esquina da Rua XV de Novembro com Avenida Mariano Torres, em Curitiba. ?Estou lá todos os dias, das 7h às 20h. Podem perguntar para os comerciantes dali, que todo mundo me conhece?, comenta satisfeita, na esperança de que alguém venha a reconhecer seu talento. Ela, inclusive, está precisando de tratamento médico – tem problemas nas pernas, que a impedem de caminhar muito.
?Dói pra caramba?, reclama, ao mesmo tempo em que exibe seu último caderno manuscrito, com 325 poemas. Ao longo de sua vida, calcula – por baixo – já ter escrito mais de cinco mil poesias.
Um número admirável, para quem teria todos os motivos para não ter inspiração…