Era a primeira vez que eu recebia aqueles autos. Tratava-se de um processo do ano de 1999, de autuação envelhecida e fininho. Estava na fase de julgamento. Dava-me a impressão que não daria muito trabalho. Comecei a analisá-lo. Li a denúncia quando, senti um calafrio na espinha. A peça acusatória denunciava J.W.S. por ter causado maus tratos a seu enteado P.H.S, de apenas dois anos de idade, causando-lhe fratura de crânio e queimadura grave na mão, com cigarro. Ao ser interrogado, J.W.S levianamente, negou a imputação, alegando que o garoto tinha por hábito apanhar chepas de cigarro no chão e, assim, deve ter se queimado.
Embora não apreciada, houve representação pela preventiva do acusado. A mãe desnaturada ao ser ouvida, sentiu-se muito a vontade ao dizer que não viu o garoto apanhando, porque estava lavando a louça e, que desconhecia o motivo que seu amásio não suportava o menino. Nessa fase, o processo emperrou. Pretendia-se ouvir a vítima (lembro que a vítima é P.H.S., de 2 anos), que tinha mudado de endereço, sendo este desconhecido nos autos. Foi oficiado ao TRE para que informasse seu endereço. A resposta informava que P.H.S ainda não era eleitor. Foi solicitado, ainda, o endereço da pequena vítima, à Vara de Infância e Juventude, setor de infratores. Descoberto, entretanto, o endereço, sua oitiva foi deprecada para uma comarca do interior do Paraná. Por absurdo e inusitado que pareça, o infantezinho, agora, quase com cinco anos de idade, foi inquirido. Do termo consta: “perguntado para o declarante o que havia acontecido, permaneceu calado, que novamente questionado se lembrava de alguma coisa, chacoalhou a cabeça dizendo que não”. Pelo que se presume, sentou sozinho na cadeira destinada às testemunhas…
Feito o relatório, concluída a fundamentação, passei para a dosimetria da pena. Quando fui analisar os antecedentes criminais do “desinfeliz”, que decepção! Os que constavam nos autos, não são do J.W.S em questão, mas de outros J.W.Ss que têm filiação diversa. Tal circunstância foi registrada, em virtude da desconsideração dos nomes dos pais de J.W.S registrados no Termo do Interrogatório. Nesta altura, constatei que o alvo da Justiça não foi o monstro-réu, mas sim o “povereto” infantezinho, que teve sua vida pregressa virada e revirada, enquanto J.W.S, tranqüilamente, desfrutava a vida. Interrompi a lavratura da sentença para, agora, determinar a requisição dos antecedentes criminais de J.W.S. Desliguei o computador. De repente, visualizei P.H.S, hoje já com cinco anos.
Indaguei-me: Será que continua apanhando do padrasto? Será que está bem ou ficou com alguma seqüela? Tive um desejo imenso de vê-lo, de protegê-lo… Quando dei por mim, flagrei-me chorando. Será que há algo errado, ou sou eu que não estou bem?…
Dr. Indignado Anônimo é juiz de Direito.