O Panóptico não é uma prisão. É um princípio geral deconstrução, o dispositivo polivalente da vigilância, a máquina óptica universal das concentrações humanas(1)
O pensador utilitarista Jeremy Bentham idealizou em várias cartas e dois pós-escritos [no final do século XVIII] – aquilo que denominou de “plano para a construção de casa de inspeção penitenciária”(2). Basicamente, trata-se de um edifício circular com várias celas, sendo que no centro está a torre de controle. Em tal torre permanece o “inspetor”, que a tudo vê, mas não é visto. Nas celas (ou apartamentos) ficam aqueles que deverão ser controlados, inspecionados, monitorados, e, quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado(3). Mas inexiste a necessidade de vigilância constante do inspetor: há, inexoravelmente, a submissão do preso, mesmo que o inspetor esteja ausente da torre. Noutros termos, a arquitetura do edifício foi de tal modo planejada por Bentham que existe a aparente onipresença do inspetor. Os presos se sentem vigiados, controlados em seus passos, mesmo que, de fato, nem sempre isso ocorra. Ou, como diz Bentham, as pessoas a serem inspecionadas devam sempre sentir-se como se estivessem sob inspeção ou, pelo menos, como tendo uma grande possibilidade de estarem sob inspeção(4). No século XXI o panóptico se traduz nas câmeras de vídeo instaladas em lojas – quase sempre com a indisfarçável placa na parede: Sorria! Você está sendo filmado(5) – ruas, estabelecimentos bancários, elevadores, e assim por diante. É difícil encontrar um lugar que não seja monitorado, quer pelas máquinas governamentais, quer pelas máquinas do vizinho. Nos dizeres de Michel Foucault, o panóptico tem um efeito importante: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação(6). A sociedade pós-moderna, em decorrência do avanço tecnológico, da era virtual, se tornou uma sociedade de vigilância(7). Os sites de vídeos; as redes sociais de relacionamentos [qualquer um pode ter seu perfil na internet, atualizar informações e ainda ter “seguidores”] e os potentes aparelhos celulares estão aí para dar a prova de que o virtual chegou para ficar. A própria sociedade monitora seus passos, pois é uma sociedade ávida de informação. De fato, não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens, como bem esclarece Foucault(8). O controle, por assim dizer, é diário, constante, indefectível. Por outro lado, a [ampla] visibilidade, não raro, é necessária, primordial. O se deixar ver instiga, dá força, inspira o espetáculo. As atenções voltadas para o novo, os olhos sempre abertos dão o toque especial para que o controle social seja cada vez mais efetivo e permanente. E os “seguidores” das “celebridades” que o digam, pois sabem tudo em tempo real. A mundialização do capital propiciou [também] tal auditório.
Entrementes, não é somente a sociedade que ostenta o poder de monitoração, de disciplina, de controle sobre os indivíduos. O Estado [com sua onipresença e onipotência quase divina], muito mais que a sociedade, monitora os cidadãos. O controle é exercido muito mais sobre a mente que sobre o corpo. Esse mesmo Estado, que detém autoridade constituída para tal, olvida [não raro] dos direitos fundamentais e às vezes extrapola seus poderes de vigilância e disciplina [e os recentes escândalos nos altos escalões da República bem demonstram que o Estado se perde no controle tem o poder-dever de guardar sigilo fiscal, mas em caso notório, amplamente divulgado, parece que tal vigilância inexistiu]. Aliás, esclarece o mesmo Foucault que numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública, mas os indiv&i,acute;duos privados por um lado, e o Estado por outro, as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo: no tempo moderno, estava reservado à influência sempre crescente do Estado, à sua intervenção cada dia mais profunda em todos os detalhes e relações da vida social, aumentar e aperfeiçoar as garantias estatais, utilizando e dirigindo para essa grande finalidade a construção e a distribuição de edifícios destinados a vigiar ao mesmo tempo uma grande multidão de homens(9). Pode-se dizer, então, que o panoptismo se faz bem presente no século XXI.
Notas:
(1) Miller, Jacques-Alain. A máquina panóptica de Jeremy Bentham, in: BENTHAM, Jeremy. O panóptico. São Paulo:Autêntica Editora, 2000, p. 89.
(2) A “casa de inspeção” é aplicável a outros estabelecimentos nos quais exista a necessidade de controle das pessoas (escolas, hospícios, hospitais, e assim por diante).
(3) Op. cit., p. 20. Todos os detalhes da construção se encontram na citada obra.
(4) Op. cit., p. 29.
(5) O cidadão tem certeza de que realmente está sendo monitorado.
(6) Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 31.ª edição, 2006, p. 166.
(7) Op. cit., p. 178.
(8) Idem, p. 179.
(9) VIGIAR E PUNIR, p. 178.
Carlos Roberto Claro é advogado em Curitiba, mestre em Direito pelo Unicuritiba.
