Palavras menores abandonadas

Minuta de petição inicial de ação ordinária de investigação do parentesco originário das palavras de afeto, pretensão cumulada com pedido de alimento permanente de cuidado e de afeição. (1)

Autoras: Palavras Menores Abandonadas

EXCELENTÍSSIMOS SENHORES DOUTORES DOS DICIONÁRIOS, CRIADORES DO SENTIDO E DOS SONS DAS PALAVRAS, COMARCA FAMILIAR DA JURISDIÇÃO DOS SIGNOS LINGÜÍSTICOS DA NOSSA HUMANIDADE E FORO DO DISTRITO LONGÍNQUO DO BEM E DO BELO:

Por meio desta ação de investigação de ascendência materna e paterna, em rito pouco ordinário e muito incomum, deduzindo legítimas pretensões cumuladas, de uma parte a declaração do parentesco originário das palavras de afeto, e de outra banda a fixação, quer provisional, quer definitiva, de alimentos incessantes frutificados pelo amor dos melhores cuidados, vêm as PALAVRAS MENORES ABANDONADAS, cidadãs desta terra brasileira, residentes e domiciliadas ao relento da jurisprudência, da legislação e da doutrina tradicionais, sem emprego fixo nem ocupação definida, meio vivas, quase mortas, portadoras da Cédula de Identidade daquilo que fala sem dizer e o é sem ser, inscritas e adormecidas no Cadastro Geral das Palavras Não Proferidas, todas dependentes da grande senhora Ausência e por isso mesmo, simultânea e paradoxalmente, seres inexistentes, nos termos do direito fundamental de ser e estar com dignidade no direito e no avesso, na luz e na sombra, no público e no privado, no individual e no coletivo, na regra e no princípio, do fim ao início, especialmente com fulcro nos artigos indefinidos de todos os nomes, pronomes, advérbios e adjetivos do Código de Processo dos Verbos Intransitivos, e com estribo nos capítulos e versículos da Constituição da República de Todos os Predicados e Substantivos, promulgada em 05 de outubro de todos os anos, propor, como de fato propõem, por meio desta petição inicial, em face dos sujeitos passivos, universais e singulares, encontráveis nos desencontros e nas esquinas dos enganos, residentes e domiciliados na letra fria da lei e na exegese lógico-dedutiva dos preceitos, que lhes seja reconhecido o direito de existirem plenamente, de não serem vivas-mortas, de falar, no Direito Objetivo, da subjetividade ineliminável, e no Direito Subjetivo das coisas insondáveis que não são coisas nem mercadoria, do bem que não tem preço nem medida, do amor que se abre em flor para semear sensibilidade nos despachos, pareceres, laudos e sentenças e, por isso mesmo, pedem para que seja declarado o fim da indiferença, do saber inodoro, da neutralidade falaciosa, da lógica das fórmulas pétreas, dos conceitos apriorísticos, de tudo que vira nada e que torna o tempo pelo avesso.

E o fazem por meio de seu advogado, profissional quiçá muito liberal, regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil sob número que já inspira cuidados cardiológicos e capilares, com endereço profissional na rua de poucos números e alguns inventos.

Pleiteiam, Excelências, sejam também ouvidas, ainda que seus sons sejam menores, sussurros de infâncias, pequenos murmúrios de adolescência, e ainda que sejam de um enquanto, de um porvir, de um sol a amadurecer, e de uma lágrima a se compor feito água de batismo.

Rejeitam, por isso mesmo, ser discriminadas como filhas espúrias dos dicionários das famílias; desejam estar no meio da oração entre pai e filha, ser o objeto direto da alocução materno-filial; querem ser o sujeito oculto do abraço entre irmãos, a mesóclise que constrói pontes na afinidade, na doçura das saudações dominicais, no perdão que vem depois das vírgulas, nos apostos que explicitam o genuíno carinho dos gestos e o seu nome que nada exclui nem apaga; querem ancorar pontos de exclamações depois do riso aberto e franco; querem povoar as reticências com verbos cor de pérola, saltitando entre frases e crases, e pondo acentos graves e agudos no português escorreito do calor afetuoso dos ninhos familiares.

Para provar que a alegação procede juntam décadas de autos, de apelos e recursos, dos quais foram excluídas; anexam, ainda, fartos laudos firmados pelos mais afamados expertos, nos quais se sobressaem fórmulas, investigações e respostas que não dão conta de si e de suas circunstâncias.

As Autoras, PALAVRAS MENORES ABANDONADAS, não se apresentam mediante rol específico e pormenorizado, pois comparecem em gênero, formando litisconsórcio ativo, facultativo, universal, na comunhão de propósitos que reclamam luz, visibilidade e atenção. São partes ativas legítimas a reclamar olhar, berço e mãos que afagam. Estão inseridas, dentre as Autoras, desde logo, a reclamar a atenção do Direito de Família e da família do Direito: a Afeição, o Apego, a Ternura, Eros, Afrodite, Ishtar, Vênus, o Cuidado, o Afago, o Compromisso, o Laço, o Vínculo, e todas as suas conexões, junções e ligamentos, exceto os nós, as ataduras e os corações acolchetados no pleno vazio das faltas.

Essas Autoras pedem lhes seja declarado o direito de existir; mas não se trata de uma existência conversinha ou de favor, e sim de uma vida vocabular digna, efetiva e apta a sustentar um estatuto jurídico mínimo de respeito e de reconhecimento. Buscam, enfim, a verdade do coração que foi eclipsada pela célere tecnologia de muitas pontas e pouca humanidade. O afeto quer a declaração de ser infinito e não apêndice de varanda discursiva ou rodapé de página computadorizada.

Impende esclarecer, Excelências que, a rigor, as Autoras não pedem o que postulam precisamente para si; apresentam uma legitimação extraordinária, um mandato sem procuração, em favor dos filhos e filhas que não são amados e dos pais que são relegados. Pedem por aqueles que emudecem no descaso, pela mãe que abraça em silêncio as despedidas sem adeus, pelo filho que partiu ao empreender viagem sem volta, no rumo sem bússola, essa vertigem que nasce no abismo dos suicídios, reais ou simbólicos. Pedem, e até mesmo encarecem, por aquelas e aqueles que não se substantivam na condição histórica da vida e se tornaram escravos de si, restos de um todo que se desfez antes de se constituir. Pedem por todos que não pedem, que não podem pedir porque o cotidiano lhes seqüestrou a voz e a esperança, e ao pedir solicitam o respeito e a licença dos que já foram sem poder dizer o grito supremo no peito dos excluídos. É o que pedem e demandam por sede de justiça plena e inafastável.

Em face de comportar tal possibilidade, requerem Tutela Antecipada para o fim de se deferir, liminarmente, que não mais se faça da presença uma forte ausência, do laço um mero nó, do visível uma poeira invisível, da paternidade um processo de desencanto e da maternidade um recurso especial sem admissibilidade nos pretórios das famílias.

Requerem, desde já, a antecipação dos efeitos da sentença, pois são verossímeis, ao máximo, as assertivas aqui expostas nas palavras que já nasceram e reclamam que sejam, em integral juízo, pronunciadas. Desde agora e para sempre querem deixar de ser órfãs esquecidas nos desabrigos do acaso. O afeto pede passagem e reivindica sua irretorquível dignidade.

No que concerne à prova documental, pedem a anexação das seguintes peças acostadas à inicial:

1. Atestado de parto e de licença ao vosso mundo para existirem em igualdade de condições;

2. Tradução em todos os idiomas do seu modo de ser;

3. Carta vinda do estrangeiro, sem remetente, declarando que, de alguma forma, ainda que restrita, conhece as autoras;

4. Fotografias (e respectivos negativos) espelhando o retrato das Autoras sentadas à beira do caminho rumo ao poente.

Apensam, ainda, a guia de recolhimento das custas que foram depositadas no banco oficial do esquecimento.

Outrossim, as PALAVRAS MENORES ABANDONADAS entendem desnecessária a realização de prova léxica pericial. Sem embargo, em não sendo este o entendimento de Vossas Excelências, desde logo, sob o princípio da eventualidade, indicam o assistente técnico e os primeiros quesitos, protestando pela apresentação de suplementares:

Assistentes técnicos: O Olhar e o Pranto que adotaram como formação profissional o viver na escola do espanto.

Além disso, eis os primeiros quesitos para a prova pericial:

1.º Podem o Senhor Perito e os Senhores Assistentes Técnicos informar, especificando os sonhos que edificam os processos do amor aptos a gerar filhos e filhas?

2.º É possível tear entrexistências sem ternura?

3.º Com quantas lágrimas são feitas as buscas e apreensões dos filhos que sofrem no padecimento dos pais que se separam?

4.º Podem o Senhor Perito e os Senhores Assistentes Técnicos informar em quais províncias de nós destacamos a vida verdadeira na qual um filho é outros todos?

5.º Quantos milhares de quilômetros quadrados são banhados pelas águas do afeto no território jurídico das famílias brasileiras à luz da jurisprudência, da doutrina e da legislação atuais?

6.º Com quantos sons, tons e letras vivas se soletra a realização do afeto nas relações familiares?

Adiantam, desde logo, suas testemunhas:

– Sons antigos dos vocabulários antepassados: Adulterinos, bastardos e espúrios;

– Filhos e pais adotivos que frutificam no dar-se contínuo da adoção;

– Conhecidas Palavras que também podem ser achadas na rua, nas esquinas dos verbos, nas paragens inférteis no mercado da razão e dos sentimentos.

Requerem, ao final, confirmando-se a tutela antecipada, seja acolhida a pretensão para declarar que é o amor a matriz de toda a descendência do afeto que como alimento perene, deve governar as relações familiares.

Requerem, ainda, a citação de todos os autores que aqui são réus, de todos os réus que se incriminaram por ações e omissões nos perdidos caminhos da dogmática pedestre, irmã siamesa do dogmatismo obtuso, de todos os nós a desatar, de todos os indiferentes, especialmente daqueles que sequer lerão o mandado citatório e permanecerão ?in albis?, um nada em si, lá e aqui, ré sem dó, verdadeiro ?dejá vu?; dos ausentes e de paradeiro bem conhecido, pedem que lhes seja dado um cura dor, essa dor que se remedia sem remédio, fora do Direito das bulas, fórmulas e receituários de manualística petrificante; pedem, ainda, sejam por edital citados os marinheiros que estão navegando com a ilha desconhecida, os pais que não adotaram seus filhos, e os filhos que não adotaram seus pais; incluam-se no edital os filhos anoitecidos na violência e amanhecidos sem alma, os pais que sangram na saudade que não cabe no retrato da parede.

De modo especialíssimo, sejam citados por meio de mandado com hora certa os julgadores que, ao apreciar uma demanda, a si mesmos demandam, aos que temem o próprio temor, aos que se produzem fabricando um sujeito representante da imagem que fazem de si próprio.

Que sejam citados todos os idiomas, línguas viventes ou mortas, para que venham integrar essa lide, e nela assumam a posição que melhor lhes aprouver, tomando parte no que lhes cabe, por direito e por inteiro, para serem instrumentos do que não se parte porque comunga, e faz, na comunhão, o Direito menos dogma e mais terra, chão e arte.

Enfim, sejam citados aqueles que vêm de pedir citação de outrem, uma vez que ao requererem venham os outros aos autos, são eles mesmos que querem fazê-lo como sons das palavras que advogam para seu próprio eco, e ao advogar para quem por meio deles pede, em verdade são eles mesmos que pedem para si, diante de si, o que no outro buscam.

Dá-se à causa o valor incomensurável do orvalho que suavemente acorda as manhãs, e da mão que segura a outra mão no berço profundo de todas as noites sombrias da existência humana.

Renunciam, desde logo, a qualquer verbo de sucumbência que terão eventualmente, pois não almejam suplantar o sentido do pretérito pelo gosto tão-só estético da primazia.

Belo Horizonte de todas as manhãs, no dia em que Ícaro fez o nosso sol possível.

Termos em que pedem deferimento para que a vida seja maior que o luto, e que o presente não devore o futuro.

Assina pelas Autoras, o Procurador, Armando Temporal, e anexa o instrumento da procuração por meio da qual a ação de procurar dá-se aqui e em todo o porvir que semeia a família do sonho e da esperança.

Nota

(1) Distribuição por dependência ao V Congresso do IBDFAM.

Texto concebido para o V Congresso do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte 2005.

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