Paisagens verbais; textos visuais

O livro “Palmas – Paisagem e Memória” de Nivaldo Krüger podia jazer anônimo ao lado de outra obras de jornalismo fotográfico para turista ver. Obras como Pantanal, Curitiba-Capital Ecológica e Mata Atlântica do meu amigo, Dr. Carlos Ravazzani, também um poeta da imagem; um fotógrafo da natureza, imobilizada na eternidade do papel.

A obra de Nivaldo passa muito longe desse estereótipo. O belo acabamento e excelente formato editorial nos fazem pensar em uma obra como as citadas. Enganei-me! Nivaldo talvez desconhecesse o poder verbal e ficcional que subjazia em sua alma. Acho que até já desconfiava, pois, há anos me chamou para tirar a poeira de seu bom português um pouco desatualizado, pois queria tentar o sinuoso caminho das letras. Aqui está ele.

À medida que ia penetrando em seu livro, seus estratos variados, fui vendo as silhuetas, já borradas pelo esquecimento, de personagens com as feições dos bandeirantes da épica conquista das Entradas e Bandeiras. É fácil perceber que a obra está contaminada pelo ufanismo e pelo resgate de fatos tão marcantes de nossa história, como a conquista das terras (por direito, espanholas), o desbravamento, o alargamento das fronteiras, o tropeirismo, as sangrentas guerras autofágicas: Farrapos, do Contestado, a do Paraguai.

A vasta pesquisa documental, a grande quantidade de registros fotográficos da paisagem… tudo isso esconde um escritor que se pensou apenas historiador e memorialista. Em “Palmas”, entremeada à linguagem arcaica e neutra dos documentos oficiais, vai se intrometendo a de um escritor que transita entre a prosa de alta voltagem poética, que nos remete , por meio de metáforas e um lirismo envolvente, a um universo mítico; a um mundo ainda em convulsão, magmático, desbravado por homens intrépidos, envoltos em capas e sagas. Muitas parecem até fugir da história documental para mergulhar nas brumas do imaginário.

Na obra estão todas as fases da fundação, história política e social da paradisíaca região de Palmas. Entretanto, meu deslumbramento efetivo ocorreu quando Nivaldo Krüger saiu da neutralidade do texto informativo e deixa vagar sua pena pelos relevos da linguagem e os fundos abismos da ficção. Assim, sem querer, Krüger refunda PALMAS, (neste caso, Palmas é o Paraná) em sua linguagem telúrica e repleta de uma lirismo novo: o lirismo do léxico gauchesco e a estranheza da sintaxe desses tempos de mescla de falares de tantas raças, de formação de nossa nacionalidade. As descrições são de uma plasticidade extrema; fotos verbais, como em:

“Palmas, a Campanha e a Natureza.”

(…) “Na vastidão da campanha, o espetáculo do amanhecer é maior, grandioso, entre as derradeiras sombras pardas da noite que se despede; e as primeiras luzes do dia nascente. Fundem-se as cores, cambiantes entre o chumbo opaco e o lilás eclodindo nos momentos finais em rubro, que a tudo envolve em um magistral banho dourado na face úmida da campanha, sempre à espera de um novo dia. Sim, um novo dia, milagrosamente nascido da velhice do tempo. Desde tempo sem conta, nascido nos recônditos misteriosos da criação. De um tempo que caminha há milhões de anos, mas sempre traz um novo dia. (…) pg. 51.

Pareceu-me familiar a atmosfera, fina névoa que pairam sobre o fragmento do quadro acima. Familiaridade remota, arcaica, com leve sabor da poesia bucólica romana de Virgílio e Horácio, poetas da harmonia do homem com a natureza campestre, rural… muito além do poder da palavra? bucolismo (pastoril, agro industrial) daquelas priscas eras, que esquecemos hoje sob a densa e espessa fumaça envenenada das grandes cidades. É! desde há muito, abandonamos nossa alma no campo. Porém, no fundo, somos e sempre seremos seres telúricos, ainda que engaiolados nas cinzentas prisões “high tech” dos edifícios de concreto. Nivaldo capta essa saudade nostálgica, em que a terra era nossa mãe, esposa e amante. Hoje, só voltamos a ela tangidos pela mão certeira da morte. Ou pelas flechas míticas dos caciques Condá e do lendário herói Guairacá, vencedor dos espanhóis. Um herói brasileiro bugre, da Serra da Esperança, antes das planuras de Guarapuava.

Tua pena, Nivaldo, traiu-te: pensavas que dela sairia apenas a palavra mansa de um cronista, mas, já sem perceberes, cavalgavas pela língua literária até os confins da tua sensibilidade e da ficção criadora. Além-pena. Já no ventre fecundo da criação dos mundos novos da palavra, que transfigura e recria. Sim!… meu caro autor, vê-se claramente isso no belo poema de forma livre, moderno, que parece pintado em alto-relevo:

A paisagem fala

“Porteira aberta, hospitalidade

árvores frondosas: repouso acolhedor

taipas antigas: trabalho paciente

campanha verde: liberdade, esperança

bosques : natureza e fartura

lagos: espelhos do firmamento;

córregos e nascentes: vida fluente

Ventos dos confins do universo,

Águas das entranhas da terra (…)

E vai por aí afora, trazendo para o verbo a plástica da paisagem, agora já um pouco metaforizada, meio metafísica, transida pelo sentimento, o ventre rumoroso das palavras profusas e algumas com significantes e significados perdidos no princípio do Verbo. Nivaldo não descreve suas paisagens; ele as reza no silêncio dos campos e das coxilhas verdejantes.

A nostalgia do campo perdido, do cheiro da terra lavrada, do mato cortado, do rumor ancestral da água corrente, do ciciar das brisas nos altos ramos das araucárias, uma fauna e flora fecundas… nos provocam sentimentos arquetípicos, guardados dentro de nós, como herança atávica do tempo das cavernas… emoções primordiais presentes, por exemplo, no belo poema a seguir, com nome de mulher:

Rio dama:

“No rio as águas correm…

Passam, passando sem parar

Mas o rio não vai.

Fica como uma imensa poesia

Lavrada nas rochas

Pelas águas passageiras

Que no eterno passar,

Fizeram o dia ficar.”

Entremeadas aos belos textos de Nivaldo, vão desfilando as fotografias poéticas da região, as crônicas e documentos oficiais da história de Palmas, do passado já lendário, os patriarcas e famílias dos desbravadores e fundadores (lá estão imobilizados nas fotos amareladas) até os dias de hoje: uma pujante cidade, onde ainda se sente o pulsar dos campos e das matas ciliares no compasso dos corações. Telurismo e modernidade e progresso desfilam, nos dias atuais, de mãos dadas pelas plagas palmenses. Em volta deles, o linguajar campeiro, com o acento gauchesco da fronteira, do cruzamento da fala do bugre, do espanhol e do nosso capiau. É uma linguagem que nos arrasta para o passado, para o lago fundo da memória.

As fazendas, velhas senhoras, testemunhas oculares das relações tentaculares de tantas gerações. Renovadas ou sem vida, tragadas pelo vendaval do tempo e do esquecimento, ainda contam suas histórias. As vozes ainda impregnam essas paredes de pedra alcantilada, de madeira ou de taipa argamassada, falando da vida, da morte e do tempo; monumentos que estão lá para nos dizer que o passado não foi lenda e nem só mito, que elas estão aí como fósseis vivos, endossando tantas sagas familiares, os amores, as dores, os odores de seus míticos fundadores. Palmas é, na verdade, um microcosmos do Brasil. É incomparável o texto abaixo, ponto culminante da obra, uma crônica, que, certamente, atravessará os tempos:

Velha fazenda

“(…) Velha fazenda, símbolo de muitos símbolos: tenacidade, igualdade, solidariedade…De homens intrépidos, de esperança e de crença. Ah! Se tuas paredes falassem! sim! mas elas falam, falam para quem tiver olhos de ver e de ouvir a linguagem concreta desta paredes caladas.(…) Ah! Velha fazenda, por vezes santuário, por vezes escola, abrigo hospitaleiro, mas também fortaleza armada, trincheira valente nestes confins da Pátria. Quantas lições guardadas nesta paredes e nestes mourões! (…)”

No capítulo do Tropeirismo vemos a pesquisa séria, documental, os mapas da Coroa de Castela sendo alterados pelas trilhas do tropeiro, fabricante de fronteiras, em torno do braseiro, no lombo das mulas, deglutindo, ávido, o arroz de sua lavra, dormindo sob o cobertor das estrelas, quatro delas sempre sinalizando o Sul: o nosso Cruzeiro. Os cascos das bestas deste homens bravos riscando novos limites nos mapas, criando ilhas dentro das terras além da linha de Tordesilhas.

E Nivaldo Krüger prossegue nessa caminhada pelas plagas de Palmas entre a memória e o coração, flagrados pela lente do fotógrafo da emoção. Às vezes, sem saber que estava tirando das sombras o espírito das grandes epopéias, o léxico crioulo da fronteira, (os paranaenses todos sabem que naquelas terras do Sudoeste está disseminada pelos campos e ares a alma do gaúcho). Na fala daquela gente do passado, mulas aos ombros, e dos novos bravos da moderna agricultura e pecuária, ainda ressoa essa exótica língua portuguesa, que dialoga com seus confins. Tantos termos e falares do tempo dos muares tenazes: as badanas, as barbelas, a cilha, a cincha, o fiador, a madrinheira,… “O vaqueano coberto pelo xaréu, passando a ponta de gado pelo vau do rio da memória…” (frase lúdica do autor). Ao passarmos por sobre a nomenclatura polifônica do dialeto, resgatado pelo autor, é impossível não lembrar da fala e língua mítica e metafísica do sertanejo, dos jagunços e capiaus de João Guimarães Rosa: a linguagem transfigurando o “estar no mundo” de todos os tempos. Os mesmos mundos teus, Nivaldo Krüger.

“PALMAS, Paisagem e Memória”, enfim , é um livro para os olhos, para o coração, para as bibliotecas escolares, para os mestres da história, para o Brasil e para o mundo. Impossível devassar-lhe toda a riqueza da linguagem e dos temas que vagam pelas fontes, pastos, prados, capões, cachoeiras, heróis, lutas, sangue e a memória, sentados no colo da alma de Nivaldo Krüger, que forjou este poema em prosa:

A pousada do tropeiro

“O sol pálido de inverno descamba por trás da coxilha; as mulas tranqueiam com as pernas espichadas pelas sombras longas da tardinha. Rolando no lombo das pedras, o rio cheio não dá vau. Correm ligeiras as águas para despencar na bulha do cachoeirão (…)” trecho, pg. 128

É a língua de minha pátria, de entre o Douro e o Minho (norte de Portugal, berço da nacionalidade e da língua de Camões), irrigada pela dureza e doçura dos novos vocábulos, criados em um novo mundo, ainda em sua gênese. A língua portuguesa, (…) ” pátria de Fernando Pessoa”, tanto pode cantar os feitos dos Lusíadas, como as sagas dos tropeiros, unindo portugueses e brasileiros. Nivaldo Krüger! continua com os olhos do coração em PALMAS, mas traz a pena para estes nossos brancos do papel em branco. A literatura está a tua espera. Não te demores!

O caráter didático desta obra é fazer-nos ver e aprender o verdadeiro sentido do grito de amor à terra, à Pátria, o ufanismo, a preservação da cultura regional, o sentimento telúrico, sobretudo o lirismo autêntico do campo, além de outros dotes de uma obra híbrida (para o coração e para o olho). Por tudo isso, ela deve ser levada às escolas, posta nas estantes de seus acervos; discuti-la nas salas de aulas ; colocá-la à disposição de todos os brasileiros, especialmente dos jovens estudantes, dos professores, dos historiadores… para que, conhecendo o passado, conheça-se e ame-se mais o Brasil e a Palmas do presente.

Esta obra, de certa forma me enganou, engana, (porque as imagens seduzem o olhar, só que dentro delas borbulham palavras: as narrativas do passado). Ela encanta, ensina, resgata a memória e mantém acesa a chama do patriotismo, feito nos rios de sangue, atrás das taipas erigidas com o suor e as feridas do braço escravo e das façanhas dos heróis da conquista dos campos de Palmas. Depois de iniciada a leitura, é a vez dos olhos se derramarem em lágrimas na beleza dos poemas fotográficos e tos textos pictóricos. Lágrimas benditas que alimentam as profusas águas das terras de Palmas.

Carlos Alberto Sanches

é escritor, poeta, filólogo, professor e membro da Academia Paranaense de Letras.

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