Em diversos trabalhos nos manifestamos contrariamente a norma que tachou de crimes hediondos determinadas condutas (desde a sua entrada em vigor), defendendo a possibilidade, tanto da progressão de regime quanto à fixação de regime aberto e semi-aberto, assim como a substituição da reprimenda privativa de liberdade por restritivas de direito, ou mesmo o sursis, quando os requisitos objetivos e subjetivos se encontrassem presentes, considerando o quantum da pena aplicado (Manual da Sentença Penal, Curitiba, Juruá, 2003, p. 369/374; Tóxicos Manual Prático Respostas às dúvidas surgidas com a Lei 10.409/02, 2.ª edição, Curitiba, Juruá, 2003, pags. 177/183; Das Penas Restritivas de Direito, site: jorgevicentesilva.com.br; etc).
Com a declaração da inconstitucionalidade do artigo 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.072/90, pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, não há mais dúvida quanto a possibilidade dos condenados pela prática de crimes denominados hediondos poderem progredir de regime, face a revogação desta regra quanto ao cumprimento integral em expiação fechada.
Ocorre que dita declaração sobre o citado dispositivo não se limita a isso, porquanto, quando esta regra entrou em vigor (lei de crimes hediondos), houve afetação também direta quanto à fixação do regime de cumprimento da reprimenda, havendo efetiva ingerência ao artigo 33 do Código Penal, quanto a possibilidade de fixação do regime aberto para os condenados à pena não superior a quatro anos, e semi-aberto para os apenados a pena que não ultrapassasse a oito anos, assim como tornou-se inviável a substituição da pena carcerária, seja por restritivas de direito ou por sursis.
Face dito dispositivo ter sido declarado inconstitucional, como conseqüência óbvia, os condenados por delitos capitulados na qualidade de crimes hediondos, que não mais podiam receber a fixação de regime diverso do fechado para cumprimento da pena, assim como ter a reprimenda substituída por sanção restritivas de direito, ainda que a quantidade da pena fixada assim autorizasse, e presentes os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão, agora não encontram mais esta óbice legal.
Isto porque em razão desta nova ordem jurídica sobre tal matéria, onde foi reconhecido que dito normativo nunca existiu (são estes os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma lei), precisamos retroagir ao tempo em que esta norma não existia (24.07.90), e analisar a matéria desconsiderando aquela regra gravosa.
Assim, na medida em que a previsão de que os condenados por crimes hediondos deviam cumprir a pena em regime integral fechado, teve como conseqüência a impossibilidade da fixação do regime semi-aberto, aberto, bem como a substituição da pena corporal por restritivas de direito ou sursis, face a incompatibilidade entre estes regramentos, agora com a exclusão deste impedimento, a possibilidade de aplicação desta modalidade de reprimenda moderada foi restabelecida.
E o argumento neste particular é simples. Se foi o artigo 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.072/90, quem deu origem à impossibilidade da aplicação de reprimenda diversa do regime fechado para expiação da pena, assim como a substituição da reprimenda carcerária por outras mais amenas, com a declaração de sua inconstitucionalidade este óbice desapareceu, passando tal direito a ser regrado excluindo-se tal impedimento legal.
Esta conclusão resta ainda mais inquestionável na medida em que o principal fundamento do voto condutor para declarar a inconstitucionalidade deste dispositivo, está fincado principalmente na violação ao princípio da individualização da pena, e justamente por isso que foi reconhecido tal preceito encontrar-se contaminado de vício.
Para melhor compreensão, e para que não fique dúvidas quanto à decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal estar fincada no princípio da individualização da pena, tomamos a liberdade de transcrever trechos deste voto. Verbis:
?foi em direta homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1.º) que a nossa Constituição Federal interditou a pena de morte e a prisão perpétua. Ao assim dispor, teria mesmo que se comprometer com a proclamação da garantia da individualização da pena, como efetivamente ocorreu (inciso XLVI do mesmo art. 5.º). E tal proclamação já significa afirmar que o cumprimento da pena privativa de liberdade de locomoção há que ostentar uma dimensão ensejadora da regeneração do encarcerado.? …
?É neste ponto que o regime das execuções penais, para permanecer fiel àquela inspiração constitucional da dignidade da pessoa humana, tem que seqüenciar a conhecida garantia da individualização da pena.? …
?Imprimindo à execução da pena constritiva de liberdade, por conseqüência, um paralelo mister reeducativo. O que implica trazer para os domínios de tal execução a garantia igualmente constitucional da individualização da pena. Seja qual for a gravidade do crime afinal reconhecido, pois o fato é que a garantia da individualização da pena vem consagrada em dispositivo constitucional posterior àquele que versa, justamente, sobre os delitos de caráter hediondo (incisos XLVI e XLIII do art. 5.º). Restando claro que ela, a garantia da individualização da pena, não se esgota com a sentença de condenação de alguém a confinamento carcerário. Quero dizer: a garantia constitucional da individualização da pena, serventia que é do princípio também constitucional da dignidade da pessoa humana, não limita essa dignidade ao momento jurisdicional condenatório que atende pelo nome de cominação.? … (STF, Rel. Min. Carlos Ayres Brito, HC n.º 82.959-7).
Portanto, a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo ora em estudo está fundada em vício por afronta principalmente ao princípio da individualização da pena, sendo verdade que a Carta Magna convocou o legislador de segundo escalão para fazê-la, ao deixar assentado que ?a lei regulará a individualização da pena? (inciso XLVI, do art. 5.º), e não menos verdade que expressamente deixou consignado que se encontra embutida nesta individualização, além da pena privativa de liberdade, também a restritiva de direitos e o sursis (alíneas ?a?, ?d? e ?e?, do citado inciso).
E qual a regra que deve ser aplicada para fins de individualização da pena, para os delitos ora em estudo?
Certamente que é a do artigo 59, do Código Penal, o qual reza que o juiz estabelecerá a pena ?conforme seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime? aí estando incluída a qualidade e quantidade da reprimenda (incisos I e II), assim como ?o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade (inciso III), e ?a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível? (inciso IV).
Este é o regramento que deve ser seguido pelo julgado condenatório no momento de aplicação da reprimenda penal, devendo o juiz fixar, conforme entenda necessária e suficiente para prevenção e reprovação do crime, o regime inicial de cumprimento da pena, e quando presente o requisito objetivo relacionado com a quantidade da reprimenda autorizar a aplicação de regime aberto ou semi-aberto, se os indeferir, deverá fundamentar seu convencimento pelo apenamento mais severo, o mesmo ocorrendo em relação à substituição por restritivas de direito e sursis, inclusive para os processos já sentenciados e transitados em julgado.
É importante neste particular observarmos que tanto o Egrégio Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal possuem entendimento pacificado no sentido de que uma vez fixada a pena-base no mínimo legal previsto para o tipo, o condenado possui direito ao apenamento mais brando segundo a reprimenda corporal aplicada nesta fase de fixação da pena, e desde que o quantum total não extrapole o requisito objetivo relacionado com a quantidade da reprimenda, ressalvada a hipótese do julgador fundamentadamente rejeitar este direito.
Isto porque, os referenciais do artigo 59, do Código Penal, devem servir para basilar tanto a quantidade da pena entre o mínimo e o máximo previsto para o tipo, quanto o regime de cumprimento da reprimenda e respectivas substituições (STJ, Rel. Min. Paulo Medina, HC n.º 40.093, DJU de 12.09.05, p. 375; Rel. Min. Hélio G. Barbosa, HC n.º 39.995, DJU de 20.06.05, p. 382, etc.).
Por isso, todos os feitos em que já tenha ocorrido o julgamento condenatório com trânsito em julgado para a acusação, ainda que pendente, ou não, de recurso da defesa, nos casos em que a pena-base foi fixada no mínimo legal, e a reprimenda corporal não ultrapassou a quatro anos, o condenado tem direito à expiação no regime aberto, com substituição por restritiva de direito, e não sendo superior a dois, ao sursis, bem como ao regime semi-aberto quando dita pena-base tenha sido fixada também no mínimo e em patamar inferior a oito anos, e a reprimenda total não ultrapasse a este quantum, devendo a negativa deste direito ser fundamentada, não mais servindo a simples invocação do dispositivo declarado inconstitucional.
Assim, por se tratar de matéria de ordem pública, em todos os feitos pendentes de julgamento, seja em primeira, segunda ou instância superior, e que envolvam esta questão, deverá ela, ainda que de ofício, ser apreciada, segundo os regramentos dos artigos 33 e seguintes (fixação do regime de cumprimento da pena), 43 e seguintes (substituição da pena corporal por restritivas de direito) e 77 e seguintes (aplicação do sursis), todos do Código Penal, por tratar-se de direto público subjetivo do condenado.
Para os feitos já transitados em julgado para a defesa, o caminho para ver apreciada esta questão pode ser o habeas corpus ou a revisão criminal, conforme for o caso, cuja matéria abordaremos no próximo caderno.
Jorge Vicente Silva é advogado, professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas e da Escola Superior da Advocacia da OAB/PR, pós-graduado em Direito Processual Penal pela PUC/PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, dentre eles, ?Tóxicos – Análise da nova lei?,
?Manual da Sentença Penal Condenatória?, e no prelo ?Crime Fiscal – Manual Prático?.
E-mail: jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br?,
Site ?jorgevicentesilva.com.br?
