As histórias pertencem aos humanos e os revelam. Ao trabalhar com narrativas, freqüentemente se exemplifica seu funcionamento e seus valores aproximando-as da experiência pessoal. Diz-se, por exemplo, que os humanos, independentemente de circunstâncias como idade, sexo ou nacionalidade, contam histórias a todo momento. E amam fazê-lo. Organizam os acontecimentos em fios e seqüências, que desenrolam com ênfase, deliciados, numa fala empolgada, dirigida aos ouvidos do interlocutor que, por sua vez, apreende esses relatos e os passa adiante.
Ganha vida, assim, mais um conto oral que confirma a sabedoria popular expressa pelo ditado: ?Quem conta um conto, aumenta um ponto?. Não apenas um acréscimo, mas o seu ponto de vista. Seja para criar boatos, seja para acrescer a história de vida pessoal, seja para divulgar o lido, ouvido e aprendido, narradores existem tantos quantos são os seres humanos, fabulistas de nascença e de cultura.
Esse prólogo me ajuda a pensar um pouco sobre a expressão ?minha vida daria um romance? que, com alguma freqüência, escapa da boca de narradores quando querem se referir a uma existência repleta de aventuras, em maior parte negativas, e até mesmo desgraçadas. Observa-se que também pessoas sem constância na leitura, ou que nada lêem, usam essa expressão. Fico analisando o fato, penSando sobre que conceito de romance está contido nessas palavras; que circunstâncias de aprendizagem fizeram esse narrador aproximar sua vida da literatura, que conjunto de valores, simultaneamente negativos e positivos, ele agrega ao termo romance.
Fica evidente uma primeira distinção: não daria um romance a vida rotineira, sem peripécias. A partir dessa concepção, não seria romance a obra Caixa preta, de Amós Oz, por exemplo. Para o narrador ingênuo, romance precisa ter acontecimentos inesperados, reviravoltas de enredo, tragédias. É possível perceber nessa concepção a forte influência dos textos narrativos do Romantismo, ou da visada romântica de literatura, acrescidos de uma boa dose de telenovelas e ficções sentimentais. A força dessas narrativas, apoiada na emoção e na provocação da lágrima, impregna um conceito de romance determinante para a associação narrativa & vida.
Na literatura de língua inglesa a associação fica muito evidente. O que denominamos romance no Brasil, em inglês é novel. Na cultura anglófona, romance é termo aplicável apenas às narrativas sentimentais, que se expressam num modo narrativo e com um enredo semelhante ao das telenovelas brasileiras.
Mais relevante, porém, é o fato que as pessoas atribuem à literatura, ao romance em especial, uma profusão de fatos inesperados ou desagradáveis, verdadeiros obstáculos a uma vida tranqüila e feliz, em seu entendimento. ?Minha vida daria um romance? é expressão que traz agregada uma sensação de recusa da rotinização, da necessidade do conflito, do embate, para que a vida ganhe status, sentido e destaque. Somente as dificuldades ou dramas tornam o viver relevante, digno de escrita e divulgação.
De fato, há muita verdade nessa relação entre as peripécias e o romance. Mas apenas no que diz respeito aos romances de entretenimento, que buscam satisfazer o leitor ingênuo. Romances sentimentais, policiais, de ficção científica buscam na seqüência avassaladora de acontecimentos o ingrediente para prender a atenção do leitor, para conduzi-lo ao estado de satisfação primária, expressa por um ?gostei!? aliviado.
Leitores experientes e competentes sabem que os romancistas extraem obras-primas de ?vidas bestas?, lembrando Drummond. Como Clarice Lispector fez em sua obra, em especial A paixão segundo GH. O enredo rarefeito passou a ser a marca do romance contemporâneo. Não é necessário que a vida seja novelesca ou rocambolesca para que a melhor literatura apareça. Um funcionário público exemplar, cumpridor de rotinas, cuja vida não daria um romance, chamado Machado de Assis, foi escritor de vidas ficcionais nada aventureiras, autor de narrativas apoiadas em não-ditos e subentendidos que representaram a realidade naquilo que ela tem de mais poderoso, que é o universo da subjetividade e da interioridade. Seus romances sobre vidas rasteiras são o mais poderoso exemplo para demonstrar o quanto se enganam os que pensam em romances como narrativas de muitos e trágicos acontecimentos. Autran Dourado, em Uma vida em segredo, escreve uma obra bela e poética sobre uma personagem cuja vida não daria um romance.
A ansiedade e ingenuidade leitoras, que só se acalmam e satisfazem com episódios e reviravoltas e dores e lágrimas, perdem a profundidade da reflexão, da meditação, do mergulho em águas desconhecidas, de que são feitas as vidas mais humanas.
De certa forma, essa mesma busca do movimento, do excesso, da mudança pela mudança atinge a atividade docente. Materiais didáticos, recursos eletrônicos, imagens e sons em profusão podem esconder ou falsear uma aula, fazendo parecer que ela só será um romance se contiver a agitação, os apelos a todos os sentidos, a hiperatividade. O estudo e a aprendizagem quase sempre requerem o silêncio, a rotina do hábito, a concentração e a simplicidade.
A vida de um bom estudante pode não resultar num romance, mas produzirá um cidadão ético, crítico-reflexivo, imune ao superficial e ao falsificado. Algo mais próximo de um poema e muito distante de uma farsa.