Jorge de Oliveira Vargas

Os representantes “fantasmas” dos cidadãos brasileiros

Recentemente estive, em Natal, num encontro dos dirigentes das Escolas Estaduais da Magistratura do Brasil, a convite, onde ouvi uma conferência do nosso grande constitucionalista Paulo Bonavides, a respeito do papel dos representantes do povo, analisado sob a ótica do parágrafo único do art. 1.º da nossa Constituição cidadã.

O mencionado dispositivo, como se sabe, diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.Quem são os representantes do povo? Só os eleitos? Só os integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo?

Normalmente o governo dos representantes eleitos é o governo das maiorias. E quem representa as minorias; quem lhes garante direitos iguais aos integrantes da maioria? O Poder Judiciário é um representante do povo, mesmo não sendo eleito?

O ilustre constitucionalista sustentou uma resposta positiva. Sim, os integrantes do Poder Judiciário representam o povo, representam como nenhum outro as minorias, garantindo-lhes os direitos independentemente de siglas partidárias e mesmo frente aos governantes.Justiça é cega nesse sentido, ou seja, não importa se o jurisdicionado é desta ou daquela ideologia político partidária; todos devem ser tratados como iguais.

A interpretação gramatical do mencionado parágrafo, em princípio, ao falar em “representantes eleitos” exclui os membros do Poder Judiciário, porém, essa forma de interpretação é apenas a inicial, principalmente em se tratando de normas constitucionais, pois a Constituição não pode ser interpretada “em tiras”, mas sim de forma unitária, portanto cada dispositivo necessita ser integrado com outras regras e princípios, quer sejam esses explícitos ou implícitos.

A legitimidade do Poder Judiciário decorre, primeiramente, de ser ele o guardião da Constituição (art. 102, caput), cabendo-lhe controlar a lei e os atos normativos, recusando-lhes validade se não estiverem em harmonia com a lei maior.

Nesse sentido consta expressamente na Constituição de Portugal, que foi uma das fontes inspiradoras da nossa, em seu art. 3.º 3: A validade das leis depende da sua conformidade com a Constituição.

Consequentemente, falando agora só das leis, cabe ao Poder Judiciário dar-lhes ou recusar-lhes a segunda sanção, ou seja, não basta o Poder Executivo sancionar uma lei para que ela seja válida, é necessário que o Poder Judiciário diga que a mesma está conforme a Constituição, e nisso consiste o que se convencionou chamar de segunda sanção.

O Poder Judiciário recebe sua legitimidade do poder constituinte originário que, através da Constituição lhe deu competência não apenas para julgar os conflitos, mas principalmente zelar pelo cumprimento do programa constitucional, garantindo, de maneira especial, a concretização dos direitos fundamentais.

Dessa maneira, controlando a constitucionalidade das leis e atos normativos e mais, como guardião do programa constitucional, exigindo e impondo aos demais poderes o cumprimento dos direitos fundamentais, individuais, coletivos e sociais, o Poder Judiciário se legitima como representante do povo.

O Estado tem que estar a serviço dos cidadãos. Pode-se argumentar, com razão, que, na prática, grande parte da Constituição se constitui apenas num protocolo de intenções; de mera promessa cujo cumprimento é eternamente postergado.

As políticas públicas são muitas vezes relegadas. O princípio unificador do Estado Democrático de Direito, que é o da dignidade da pessoa humana, é ignorado. A título de exemplo cito a vedação de penas cruéis, que é ali garantida no art. 5.º, XLVII, e; direito esse que é diuturnamente desrespeitado nas nossas Delegacias de Polícia, como denunciado pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Denunciar as condições degradantes das carceragens a organismos internacionais de direitos humanos e ingressar com pedidos de habeas corpus em favor dos presos detidos em cadeias superlotadas são algumas medidas propostas pela Comissão de Direitos Humanos da OAB Par,aná.

… A situação da carceragem de Paranaguá foi apontada como um dos casos emblemáticos, onde estão abrigados 270 presos em celas com capacidade para no máximo 27 pessoas.

A presidente da comissão citou os inúmeros problemas encontrados, além da superlotação: proliferação de doenças, absoluta falta de higiene, ausência de ventilação e luminosidade, uso, por parte de agentes, de métodos que causam lesões graves em presos e que não são tratadas.

… há relatos de que a temperatura interna chega a 55 graus Celsius. Houve uma ocasião, na carceragem de Pinhais, em que os presos ficaram quatro dias sem água.(1)

E os precatórios, cujo prazo para pagamento passou de no máximo um ano e meio para trinta e quatro anos e meio? E a carga tributária com efeito regressivo que atinge aproximadamente 85% dos tributos: quem ganha mais paga menos?

E o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado? E o à boa administração? Realmente, se deixarmos para o Executivo cumprir o programa constitucional, acreditando na Constituição dirigente, a maior parte dos direitos fundamentais, principalmente os sociais, não passará de mera promessa.

É aí, nesse ponto, que deve ser realçado o poder/dever do Judiciário em representar o povo, principalmente aquela parcela que necessita da implementação urgente dessas políticas públicas; que necessita de moradia, emprego, segurança, educação, saúde, lazer, etc.

Mas dirão alguns, a interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas fere a independência dos Poderes consagrada no art. 2.º do Estatuto Maior? Essa conclusão é equivocada. Na verdade, só há um poder: o do povo.

O Legislativo, Executivo e Judiciário tem funções, ou Poder/Dever. O fato do executivo não implementar as políticas públicas impõe ao Judiciário o dever de exigi-las, como representante do povo. Não há interferência indevida em se tratando de omissão, há interferência necessária.

Porém, muitos magistrados ainda entendem que não são legítimos representantes do povo e por isso, em nome da “independência” dos Poderes se omitem, com isso se transformando, como disse Paulo Bonavides, em representantes fantasmas.

Esse estado de coisas tende a se modificar com o aprimoramento constante dos nossos magistrados, principalmente através de cursos de atualização e aperfeiçoamento levados a cabo, de maneira especial, pelas Escolas da Magistratura, destacando, nesse ponto, a do Paraná, que recebeu o “Selo Enfam”, como a melhor Escola da Magistratura do Brasil.

Notas:

http://www.jusbrasil.com.br/noticias/ 2305182/oab-propor-acoes-contra-a-superlotacao-de-cadeias-no-parana, capturado em 07 de janeiro de 2011.

Jorge de Oliveira Vargas é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestre e Doutor em Direito Público pela UFPR, professor de direito constitucional na Emap e de constitucional e processo civil na UTP, Unibrasil e OPET.

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